Dano extrapatrimonial contratual e indenização punitiva

AutorRafael Marinangelo
Páginas203-221
CAPÍTULO VI
DANO EXTRAPATRIMONIAL
CONTRATUAL E INDENIZAÇÃO PUNITIVA
Fundamentum auten est iustitiae des, id est dictorum conventorumque constantia et veritas.
(O fundamento da justiça é a boa-fé, isto é, o cumprimento sincero dos compromissos e dos
acordos) – Cícero, De Ofcis, Proemio.1
As funções primordiais do contrato são as de atuar como instrumento de circu-
lação de riquezas, tanto quanto o de agir como mecanismo de satisfação de interesses
e de desenvolvimento de atributos da personalidade humana.
Construído sobre os alicerces do pensamento Romano, o contrato remonta
à ideia de instrumento de sujeição das partes a um sistema de regras cogentes
criadas por meio do exercício da autonomia privada. Essas regras visam regular
o comportamento das partes, a f‌im de atender aos interesses subjacentes ao pro-
grama contratual.
Com o predicado de trazer segurança e conforto aos seus partícipes, o contrato
delineia e consolida os direitos e obrigações queridos e aceitos mutuamente, além
de garantir a respectiva tutela do ordenamento jurídico às eventuais infrações ao
que foi consensualmente pactuado.
Diversos fatores, dentre os quais citamos, exemplif‌icativamente, o grande
e rápido desenvolvimento das relações comerciais, as contratações em massa e a
necessidade de assegurar as céleres relações comerciais, erigiram o instrumento
contratual a um dos institutos mais importantes do direito contemporâneo2.
1. Excerto extraído da obra Quebra de Contrato – O Pesadelo dos Brasileiros, de Murillo Mendes e Leonardo
Attuch, 2. ed. Belo Horizonte: Folium, 2008, p. 21. O original encontra-se no livro Ciceronis Opera, tomus
duodecimus, anno MDCCXCVII, Matriti Ex Regia Tipographia. Operas dirigente P. I. Pereira, capítulo De
off‌iciis, p. 11.
2. Como obtempera Enzo Roppo (O contrato. Trad. Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Livraria
Almedina, 1988): “Contrato é um conceito jurídico: uma construção da ciência jurídica elaborada (além
do mais) com o f‌im de dotar a linguagem jurídica de um termo capaz de resumir, designando-os de forma
sintética, uma série de princípios e regras de direito, uma disciplina jurídica complexa. Mas como acontece
com todos os conceitos jurídicos, também o conceito de contrato não pode ser entendido a fundo, na
sua essência íntima, se nos limitarmos a considerá-lo numa dimensão exclusivamente jurídica – como
se tal constituísse uma realidade autônoma, dotada de autônoma existência nos textos legais e nos livros
de direito. Bem pelo contrário, os conceitos jurídicos – e entre estes, em primeiro lugar, o de contrato –
ref‌lectem sempre uma realidade exterior a si próprios, uma realidade de interesses, de relações, de situações
econômico-sociais, relativamente aos quais cumprem, de diversas maneiras, uma função instrumental.”
INDENIZACAO PUNITIVA.indb 203INDENIZACAO PUNITIVA.indb 203 17/09/2021 11:11:5517/09/2021 11:11:55
INDENIZAÇÃO PUNITIVA E O DANO EXTRAPATRIMONIAL NA DISCIPLINA DOS CONTRATOS • RAFAEL MARINANGELO
204
Por outro lado, essas mesmas transformações sociais, aliadas à internaciona-
lização da economia e às inovações tecnológicas, impulsionaram mudanças sem as
quais o contrato perderia sua capacidade de regular e gerir as relações intersubjetivas
a que é vocacionado. Tais mudanças foram de tamanha envergadura e atingiram
sobremaneira a dialética negocial – como se verif‌ica do inf‌luxo de padronizações e
contratações de massa – que houve até quem apregoasse, de modo açodado, a sua
morte.3-4
O contrato, porém, não morreu e não vislumbramos o f‌im próximo. Ao revés,
o sentimento é de perpetuação, pois o tempo apenas apura e depura este importante
instrumento, tornando-o mais vivo e atuante a cada fase de seu processo evolutivo.
Firmes nesse entendimento, acreditamos que a tarefa do Direito seja adaptar
os contratos, de modo mais célere e mais ef‌icaz, às necessidades atuais. A sociedade
da informação, dos constantes avanços tecnológicos e do mundo globalizado ca-
racteriza-se por relações mais voláteis e mais complexas, exigindo do ordenamento
jurídico a capacidade de amoldar-se às novas situações de maneira mais célere e ef‌icaz.
Advém desses fatores a necessidade de ref‌letir sobre novos paradigmas contratuais.5
Dentre os inúmeros desaf‌ios impostos pela sociedade atual, o que atua mais
incisivamente sobre o contrato e o papel que representa é, a nosso ver, a crise da
conf‌iança. Mais do que um princípio de proteção aliado ao da boa-fé, a conf‌iança
é a base do próprio contrato. Sem ele, as pessoas não se relacionam, não creem nos
inúmeros compromissos representados pelo instrumento contratual e não acreditam
3. A esse respeito, Claudia Lima Marques (A chamada nova crise do contrato e o modelo de direito privado
brasileiro: crise de conf‌iança ou de crescimento do contrato. A nova crise do contrato. Estudos sobre a
nova teoria contratual. São Paulo: Ed. RT, 2007) menciona a denominada crise de conf‌iança, advinda
ao aumento de litígios e da desconf‌iança entre os agentes econômicos. Segundo a autora, a primeira
grande crise do contrato nasceu com a Revolução Industrial, a massif‌icação da produção e da distribuição
indireta, que geraram o declínio do voluntarismo. A segunda crise ocorreu na pós-modernidade, com o
crescente movimento de integração econômica e a diminuição do intervencionismo estatal na proteção
dos contratantes. A terceira e última crise, ocorrida após os atentados de 11 de setembro de 2001, é a crise
de conf‌iança. Embora seja inegável as modif‌icações substanciais enunciadas pela autora, não se pode
af‌irmar que o contrato perdeu sua força ou importância como meio de autorregulamentação da vontade
e de circulação de riquezas. Ao revés, o que se percebe é um rejuvenescimento do contrato para melhor
atender às necessidades e anseios da sociedade contemporânea.
4. Mais pessimista é a posição de Grant Gilmore (The Death of Contract. Columbus, Ohio: Ohio State University
Press, 1974), ao preceituar a morte do contrato. Sobre o tema, Eros Roberto Grau e Paula Forgioni (O
estado, a empresa e o contrato. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 17-18) comentam: “O discurso a respeito
da crise do contrato e da necessidade de um novo paradigma é desenrolado a partir da análise da teoria
clássica do contrato. No entanto, em todas as suas versões – especialmente naquela produzida pelos norte-
americanos, que falam da morte do contrato – esse discurso é, na verdade, um discurso a favor da vida do
contrato, na medida em que propõe a superação da teoria clássica. A ‘queda da liberdade contratual’, ao
ensaiar a construção de uma nova teoria, evidencia precisamente o poder de sobrevivência do contrato,
que continua embasando o sistema econômico à medida que este se transforma. À ‘morte do contrato’
corresponde apenas o f‌im da teoria clássica que, na dicção de Guido Alpa, cede ante a necessidade da análise
conduzida não segundo o método formal, mas mediante o exame dos interesses substanciais – que traz a
objetivação e despersonalização do contrato.”
5. MARQUES, op. cit.
INDENIZACAO PUNITIVA.indb 204INDENIZACAO PUNITIVA.indb 204 17/09/2021 11:11:5617/09/2021 11:11:56

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT