Danos a dados pessoais: fundamento s e perspectivas

AutorCarlos Edison do Rêgo Monteiro Filho e Nelson Rosenvald
Páginas1-19
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DANOS A DADOS PESSOAIS:
FUNDAMENTOS E PERSPECTIVAS
Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho
Nelson Rosenvald
Sumário: 1. O dano em novos ambientes tecnológicos. 2. Danos causados a dados pessoais:
novos contornos. 3. Problemas de causalidade em cenários digitais. 4. A tutela dos dados
pessoais em ação. Referências.
1. O DANO EM NOVOS AMBIENTES TECNOLÓGICOS
O principal objetivo da responsabilidade civil consiste em indenizar as vítimas por
danos que elas não deveriam suportar com base na avaliação de interesses que um siste-
ma legal considera dignos de proteção.1-2 Como regra geral, normalmente o dano recai
sobre a própria vítima (casum sentit dominus), a menos que haja uma razão convincente
para transferi-lo para outra parte a quem possa ser atribuída.3 Os motivos para imputar
danos a outra parte variam de acordo com o tipo de responsabilidade que está em jogo.
Sob a responsabilidade subjetiva, o ponto principal é que o comportamento censurável
e evitável do infrator causou o dano – o que traduz simultaneamente argumentos de
justiça corretiva e o fornecimento de incentivos corretos para evitar danos. Já sob regi-
mes de responsabilidade objetiva, o fundamento é o de que a pessoa responsável expôs
1. “Todo sujeto está expuesto a sufrir daños como consecuencia de su vulnerabilidad, pero no siempre padece daños
jurídicos. Para merecer ese calif‌icativo los daños deben ser resarcibles. A veces la víctima debe soportar, total o
parcialmente, el menoscabo que implican los daños. Cuando ello ocurre, se le impone la carga de asumirlos”.
(ALTERINI, Atilio A.; CABANA, Roberto M. Lopez. Nuevos daños juridicos. In: Derecho de Daños. Buenos Aires:
La Ley, 1992, p. 203).
2. Como já tivemos oportunidade de af‌irmar em outra obra, “O protagonismo do modelo compensatório não é uma
exclusividade das jurisdições da civil law. Nos países que compõem a common law, o “princípio do dano” de John
Stuart Mill sempre foi uma das mais vigorosas defesas epistemológicas da liberdade: ‘o único propósito pelo qual o
poder será exercitado contra um membro de uma comunidade civilizada contra a sua vontade será o de evitar um
dano para outros’. Ou seja, o Estado só pode interferir nessa liberdade contra vontade do indivíduo para impedir
que ele cause dano a terceiros”. ROSENVALD, Nelson. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo: o disgorgement
e a indenização restitutória. Salvador: Juspodivm. 2019, p. 27.
3. Como anota Klaus Günther, “É essa função de estruturação que funda o signif‌icado da responsabilidade como
conceito-chave em contextos diversos. Trata-se, enf‌im, de estruturar a comunicação social acerca de problemas
sociais, conf‌litos, riscos, perigos e danos de maneira que estes sejam atribuídos a pessoas singulares, a indivídu-
os, e não a estruturas e processos supraindividuais: à sociedade, à natureza ou ao destino”. (GÜNTHER, Klaus.
Responsabilização na sociedade civil. Tradução de Flavia Portella Püschel. Revista Novos Estudos, São Paulo, ed.
63, v. 2, jul. 2002, p. 109).
CARLOS EDISON DO RÊGO MONTEIRO FILHO E NELSON ROSENVALD
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outras pessoas aos riscos de uma atividade da qual se benef‌iciou e que estava sob seu
controle. Isso se traduz novamente, embora por caminho distinto, em argumentos de
justiça corretiva e de incentivos corretos.
A escola da análise econômica do direito enfatiza o “cheapest cost avoider”, com o
custo mais baixo funcionando como fator de atribuição de responsabilidade à pessoa
que poderia desistir de um comportamento censurável (na imputação subjetiva) ou
àquela que controla um risco e sua extensão (na imputação objetiva).4 Ilustrativa-
mente, para os automóveis que (ainda) se utilizam, o proprietário/usuário/detentor
é a pessoa mais apropriada a ser responsabilizada, pois se benef‌icia da operação em
geral, tendo o mais alto grau de controle do risco ao decidir quando, onde e como usar,
manter e reparar o veículo. Todavia, no contexto de carros autônomos, a maioria dos
acidentes será causada pelo mau funcionamento da tecnologia. A este novo quadro
pintado nos tons das tecnologias digitais emergentes, os conceitos tradicionais de
proprietário/usuário/detentor não mais se adequarão. Em vez disso, opta-se pelo
conceito mais neutro e f‌lexível de “operador”, que se refere à pessoa que controla o
risco relacionado à operação de tecnologias digitais emergentes e que se benef‌icia
dessa operação.5 Quando veículos autônomos modernos são de propriedade priva-
da, o produtor é o “cheapest cost avoider”, estando em posição de controlar o risco
de acidentes. Todas as decisões sobre rota e velocidade são tomadas por algoritmos
por ele fornecidos – ou por um terceiro agindo em seu nome. Por outro lado, não é
possível simplesmente eximir o operador: ele que decide quando, onde e para quais
f‌ins a tecnologia é usada e quem se benef‌icia diretamente com o seu uso. Além disso,
se a responsabilidade objetiva pela operação da tecnologia recaísse apenas sobre o
produtor, o custo do seguro seria repassado aos proprietários de qualquer maneira
por meio do mecanismo de preços.6
Em reforço, as formas existentes de responsabilidade solidária permitem que os
prejudicados busquem compensação nos “deepest pockets” quando houver uma plu-
ralidade de atores envolvidos no evento lesivo, principalmente se entre eles houver
pessoas jurídicas de direito público ou grandes corporações. Embora o valor pago seja
desproporcional à contribuição do coautor para a causação dos danos, a solidariedade
4. TIMM, Luciano Benetti. Os grandes modelos de responsabilidade civil no Direito Privado: da culpa ao risco. Revista
de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 14, n. 55, p. 149-167, jul./set. 2005.
5. ‘Controle’ é um conceito que varia desde a simples ativação da tecnologia – expondo terceiros a seus riscos poten-
ciais – até a determinação do resultado (como determinar o destino de um veículo ou def‌inir as próximas tarefas
de um robô), incluindo outras etapas intermediárias, que afetam os detalhes da operação do início ao f‌im. Com
as tecnologias digitais emergentes, geralmente há mais do que apenas uma pessoa que pode, de uma maneira
signif‌icativa, ser considerada como “operador” da tecnologia. O proprietário/usuário/detentor pode operar a
tecnologia no plano imediato, mas frequentemente haverá um provedor de “back-end” que def‌ine os recursos da
tecnologia e fornece serviços essenciais de suporte, com alto grau de controle sobre os riscos operacionais a que
outros estão expostos, benef‌iciando-se da operação, ao lucrar com os dados por elas gerados. Onde houver mais
de um operador, como um operador de front-end e back-end, a responsabilidade deve recair sobre quem tem
mais controle sobre os riscos apresentados pela operação. A f‌im de evitar incertezas, o legislador deve def‌inir qual
operador é responsável e sob quais circunstâncias.
6. No entanto, quanto mais sof‌isticado e autônomo for um sistema, menos alguém exercitará o “controle” real sobre
os detalhes da operação, def‌inindo e inf‌luenciando os algoritmos.

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