Danos à Integridade Psicofísica do Trabalhador - Construção Conceitual, Epistemologia e Especificação de Prejuízos

AutorFlaviana Rampazzo Soares
Ocupação do AutorCoordenadora
Páginas131-144

Page 131

1. Introdução

Negligenciados até a segunda metade do século XIX – período em que encontraram forte oposição do direito privado, cujas preocupações relacionavam-se apenas à segurança no tráfego jurídico1–, os direitos da personalidade passaram a ocupar, desde então, cada vez mais espaço na ciência jurídica, atenta ao menoscabo que duas grandes guerras mundiais desencadearam em relação ao valor da pessoa humana. Operou-se, assim, gradativamente, uma transição do paradigma estritamente “patrimonialista” para uma vertente axiológica mais “personalista”, fenômeno demarcado, no Brasil, pelo advento da Constituição Federal de 1988 (MORAES, 2003, p.
19). Com isso, a dignidade humana passou a desempenhar o papel de “valor-guia de um processo de releitura dos variados setores do direito, que vão abandonando o liberalismo e o materialismo de outrora em favor da recuperação de uma abordagem mais humanista e mais solidária das relações jurídicas.” (SCHREIBER, 2013, p. 7).

Esse clima auspicioso propiciou solo fértil para que germinassem os construtos teóricos em torno dos direitos da personalidade – por meio de concepções jusnaturalistas –, como direitos imanentes e indissociáveis ao homem2, existentes independentemente de sua proclamação pelo legislador3e até mesmo “da ação de seu titular” (LOPEZ, 2004, p. 57). Além disso, a doutrina também evoluiu na ideia de um “direito geral de personalidade”, fruto do “avanço de uma maior subjectivação no espectro jurídico, da consolidação das ideias de direitos inatos, de direitos fundamentais e de direitos subjetivos [...] e a necessidade de complementação dos direitos especiais de personalidade.” Reconheceram-se, pois – diante da complexidade da vida em sociedade e da infinita diversi-dade de comportamentos humanos –, direitos que “a ordem jurídica desde sempre formulou ou admitiu, se bem que com diversas estruturas operativas” (CAPELO DE SOUZA, 1995,
p. 91-92).

Assumido o pressuposto de que a pessoa humana é valorada per se, ou seja, dotada de atributos e interesses tutelados pelo Direito, embora economicamente inestimáveis, arquitetam-se princípios e regras que tendem a tutelar essa dimensão existencial (MARTINS-COSTA, 2001, p. 21-22). E essa conjuntura está umbilicalmente imbricada à responsabilidade civil, que tem na consolidação da reparabilidade dos prejuízos extrapatrimoniais – temática em torno do qual orbitam todos os trabalhos que compõem esta obra – uma das mais significativas de suas consequências.

Page 132

2. Dano extrapatrimonial e sua compensação

Da impossibilidade ontológica de se mensurar as lesões extrapatrimoniais, soa quase intuitivo que o prejuízo que delas decorre é irreparável. Embora a asserção seja verídica,4ela contém um perigoso sofisma, na medida em que pode levar à conclusão – inconstitucional, frise-se5– de que essa característica poderia conduzir à letargia do Estado, que permaneceria indiferente e sem resposta às violações não econômicas. Tal raciocínio fora capturado pelo Supremo Tribunal Federal, que, durante muito tempo, claudicou sobre o assunto, assentado na ideia de que o prejuízo imaterial não era passível de ressarcimento.6O equívoco de tal premissa é manifesto: a incapacidade de avaliar monetariamente o que é imaterial traduz, tão somente, “a medida de nossa ignorância” (POINCARÉ, 1897, p. 3), mas jamais poderia configurar obstáculo à satisfação do ofendido, porquanto “a condição de impossibilidade matematicamente exata da avaliação só pode ser tomada em benefício da vítima e não em seu prejuízo” (AGUIAR DIAS, 1960, p. 777). No mesmo diapasão, o Tribunal Superior do Trabalho já deixou claro que “a impossibilidade de se penetrar na alma humana e constatar a extensão da lesão causada não pode obstaculizar a justa compensação.”7Apesar de o Direito ter dado o primeiro passo, qual fora reconhecer a necessidade de dar resposta adequada às lesões de ordem extrapatrimonial – que não são, propriamente, indenizadas, mas, sim, compensadas8–, caminhou tropegamente na busca de um fundamento racional para a reparação, na construção de um conceito epistemologicamente aceitável e na eleição de critérios válidos de quantificação.

3. O binômio “culpa/castigo” como primeiro fundamento do dever de reparar

Apesar de o presente texto empregar – desde o início – a nomenclatura “dano extrapatrimonial”, por ser de melhor rigor taxonômico para o signo,9é certo que a expressão adotada pela Constituição (CF, art. 5º, V e X) e, quiçá por isso, também pela prática forense, é “dano moral”, vocábulo destituído da simetria que deve existir entre conteúdo e continente na formação de um conceito. A opção legislativa pelo verbete possui raízes históricas vinculadas aos influxos das religiões abraâmicas – em especial, o cristianismo –, que têm o “pecado” na origem da Criação e, além disso, uma visão de mundo compartimentada entre “bem” e “mal”. Sob esse prisma, o Direito Canônico também reivindicou a centralidade da culpa para a responsabilidade civil, tendo na exprobração/censura ao causador do dano o fundamento deontológico de justificação do dever de reparar.10Não obstante a doutrina tenha percebido “a necessidade de conceber um sistema de responsabilidade civil em que o nexo de imputação da obrigação de indenizar se deslocasse do conceito e demonstração de culpa” (GODOY, 2009, p. 14), ainda há traços muito marcantes de sua vinculação, tanto na edificação de pressupostos legais11quanto no arbitramento do montante reparatório, no qual são – inadvertidamente – embutidos critérios punitivos.12Se outrora o discurso punitivo fora útil em face do imperativo de se encontrar um argumento consistente para reparação pecuniária de prejuízos imateriais (GHIARDI, 1972-1973,
p. 411), atualmente ele se mostra equivocado e obsoleto, mesmo porque, nos próprios países de common law, a bifurcação histórica entre punitive damages e compensatory damages já tem mais de 250 anos.13Deveras, em 1763, na Inglaterra, a Common Court of Pleas decidiu os casos Huckle v. Money, 95 Eng. Rep. 768 (CP 1763), e Wilkes v. Wood, 98 Eng. Rep. 489 (CP 1763), que traçaram os contornos das condenações civis de caráter estritamente aflitivo, por lá denominadas punitive damages ou exemplary damages, com função punitiva e dissuasória. Mais ou menos na mesma época, as cortes inglesas também começaram a reconhecer a noção de pain and suffering como forma de reparar os prejuízos extrapatrimoniais (WELLS, 2010, p. 570), tendo como precursor o caso Scott v. Shepherd, 96 Eng. Rep. 525 (K.B. 1773), no qual se reconheceu

Page 133

que a vítima sofrera tormentos e dores lancinantes em razão
de um acidente com um rojão e que esse sofrimento constituía
um dos elementos do prejuízo (O’CONNELL; CARPENTER,
1983, p. 412). Era a gênese da figura que mais se aproxima
dos nossos “danos morais”, na estrita e desviante dimensão
do pretium doloris, ou seja, compensação pela dor da vítima.

Nos Estados Unidos da América, desde a segunda metade do século XIX, a parcela punitiva passou a ser destacada na condenação, e os prejuízos imateriais foram englobados pelos compensatory damages. Em 1851, no caso Morse v. The Auburn and Syracuse Railroad Co., 10 Barb. 621, (N.Y. Sup. Ct. 1851), a Suprema Corte de New York deixou claro que a reparação das ofensas extrapatrimoniais não tinha caráter punitivo, na acepção técnica do termo, sendo estritamente compensatória.14 A Suprema Corte norte-americana, por sua vez, reconheceu, em Cooper v. Leatherman, Inc. – 532 U.S. 424, que, apesar de os punitive damages terem operado a compensação de prejuízos imateriais até o século XIX, com a expansão do conceito de compensatory damages – abarcando a reparação do pain and suffering , a teoria punitiva tornou-se mais pura.15Portanto, diferentemente do que afirma parte da doutrina,16os punitive damages dos países anglo-saxônicos nada têm a ver com o nosso “dano moral”, cujo conceito, função, requisitos e critérios de quantificação devem ser totalmente diversos.

4. Prejuízo extrapatrimonial e teorias sentimentalistas do dano

A desvinculação das funções reparatória/compensatória e punitiva/dissuasória, ao menos no plano epistêmico da responsabilidade extrapatrimonial,17consolidou-se, pois, nos países de common law, desde a segunda metade do século
XIX. Outrossim, conquanto encontrasse muita resistência no tecido social da época, foi na reparação da dor – em sentido estrito e, por isso, tendo como “pano de fundo” as lesões corporais – que se desenvolveu a ideia de reparação do prejuízo imaterial. Para aquele cenário, era um grande salto de qualidade, já que o substrato cultural ainda se via impregnado da percepção de que as lesões corporais infligidas não intencionalmente configuravam genuíno Act of God, desígnio divino que todo ser humano deveria suportar com resignação. Concedia-se, assim, com enorme reprovação ética, que a reparação de danos desse jaez era jurídica, mas não moralmente aceitável.18Paulatinamente, porém, a proposta foi assimilada e, embora de forma não unânime, atravessou o século XIX, adentrou o século XX19e invadiu o século XXI20reverberando o discurso de que o dano extrapatrimonial era sinônimo de sensações desagradáveis. Não é preciso muito esforço hermenêutico para compreender o desacerto dessa proposição...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT