O 'dark side' dos direitos humanos

AutorDiego Nunes
Páginas277-294

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1 Introdução

Há pouco mais de 70 anos, passou-se pelo processo de "gestação" da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Passados o fim da II Guerra Mundial e a formação da ONU, formou-se uma comissão de notáveis - René Cassin, John Peters Humphrey, Eleanor Roosevelt, Jacques Maritain - a fim de pensar uma estratégia para o respeito aos direitos humanos. O resultado foi a edição de uma carta de direitos2.

Importante salientar que essa carta surge de um contexto muito particular. Aproximá-la sem as devidas advertências às declarações Inglesa (1688), Americana (1776 e 1791) e Francesa (1789) tratar-se-ia de claro anacronismo. No século XX não se tratava de garantir liberdades burguesas, como no século XVIII, mas um mínimo existencial e a impossibilidade de distinções de qualquer natureza3. Por outro lado, se há algo que une tais experiências é buscar na linguagem dos direitos a resposta para os problemas políticos enfrentados.

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Por essa razão seria possível fazer uma história dos direitos humanos a partir das cartas de direitos dos séculos XVII e XVIII, como fez Lyn Hunt4.

O que estava em jogo era considerar a utilização do léxico jurídico para mudanças culturais sensíveis. Não confundir, portanto, com alguns "antecedentes" por vezes citados, como o Cilindro de Ciro. O reconhecimento de algum direito neste e em outros documentos da antiguidade não levam em conta a existência de um Estado capaz de prover ou renegar direitos, como na modernidade.

Pergunta-se, então, se analisar os direitos humanos sob uma perspectiva teórico-histórico-jurídica seria capaz de revelar as contradições deste discurso que se coloca como necessariamente de vanguarda. Recentemente, questionou-se sobre a existência d’O lado obscuro dos direitos humanos5.

Assim, far-se-á uma apresentação de algumas linhas historiográficas e teóricas do Direito para verificar como os direitos humanos se harmonizam ou não com uma perspectiva jurídica pluralista e democrática. Com isso, se verá algumas críticas aos direitos humanos e verificar como funciona esse jogo de emergências emancipatórias e lógicas de dominação.

2 Os direitos humanos dentro das perspectivas contemporâneas da teoria e história do direito

A solução de Kelsen6, ao início do século XX, foi equiparar teoricamente Estado e Direito. A consolidação do constitucionalismo7deu-se por meio da hierarquização do direito e do controle da lei pelas cortes constitucionais. Assim, mesmo contra a teoria pura do jurista austríaco, abriram-se as portas para um novo jusnaturalismo a partir do pós-guerra, verificável na tradição do neoconstitucionalismo8e dos direitos humanos, porque ao fim o fundamento seria metafísico.

Isso faz com que algumas questões que já circundavam o contexto das declarações burguesas ainda assolem os direitos humanos hoje, tais como: a compatibilidade das liberdades burguesas (igualdade, liberdade e propriedade) com a democracia, haja vista a crise de representatividade política; se os direitos sociais constituem-se em desenvolvimento do Estado ou um entrave a isto; a difícil concretização do sujeito de direito, uma vez

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que o universalismo iluminista não conseguiu superar questões de gênero, bens, status, normalidade, "raça"; e a irrenunciabilidade de uma esfera de absolutismo estatal, por meio da exceção9.

De outro norte, a popularização do discurso sobre os direitos humanos no meio jurídico proporcionou uma série de mudanças radicais em seus aspectos teóricos, especialmente neste novo milênio. Certamente se constituem como incertezas ao jurista, habituado à imobilização do direito em textos, justamente ao que se opõe o fundamento metafísico dos direitos humanos. Era um traço da tendência fisiológica que punha a certeza do direito (ou "segurança jurídica") na lei, e a tendência patológica do discurso jurídico em sempre submeter a política ao direito.

A decretação no plano fático do fim das "mitologias jurídicas da modernidade"10(ainda que permaneçam firmes e fortes em determinadas vertentes do direito) indica uma estação de fertilidade do direito. Um exemplo possível seria a hibridação de sistemas jurídicos, tal como ocorre com a União Europeia, que em sua ordenação reúne elementos tanto da civil law (a positivação de direitos humanos na Carta de Nice11como da common law (em termos de garantias processuais e procedimentos judiciais).

Justamente por isso, paradoxalmente a modernidade do discurso dos direitos humanos, em termos de fatores teóricos do direito, poderia se constituir em um retorno à pré-modernidade jurídica de matriz jusnaturalista? Essa é uma comparação em certo sentido útil, mas falsa. Útil porque revela que estamos em tempos de relatividade do direito (afinal, seriam os direitos humanos, no plano fático, absolutos como se dizem?); falso, porque indica claro anacronismo, coisa que a atual fase dos estudos histórico-jurídicos não comporta (pois está claro que cada experiência histórica possui sua especificidade e os direitos humanos do século XXI não correspondem aos direitos naturais do século XVII).

O direito contemporâneo - na verdade, desde que se recepcionou o linguistic turn pelo direito - passou a ser encarado como interpretação. Texto e fato são encarados como interdependentes. A novidade hermenêutica se deu na nova relação entre texto e intérprete, contra a dominação daquele e a passividade deste. Passa-se a distinguir a disposição (texto) da norma (sentido do texto) por meio da mediação do jurista12.

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Isto significa, de um lado, a afirmação da historicidade do direito, porque construído pela tradição que trouxe o pensamento jurídico até este momento. De outro, significa também reconhecer que o direito encontra-se vivo no momento presente, a partir das pré-compreensões em permanente reconstrução. Por isso, o direito hoje se configura como "ordenamento observado"13: com elasticidade (não infinita, sob o risco de um "estado de natureza hermenêutico"14, mas em consolidação.

Neste sentido, a proposta de Hespanha15sobre um pluralismo contemporâneo consentâneo a um direito democrático parece adaptável ao atual estágio do direito - e, como veremos a seguir, para uma interpretação crítica dos direitos humanos. Ao reunir a ideia de norma de reconhecimento (adaptada à perspectiva pluralista) de H. Hart16, a democraticidade das instâncias de participação política (mas com consensos alargados) de

J. Habermas17, e sistemas autorreferenciais de N. Luhmann18, Hespanha constrói um modelo realista capaz de atuar na atual conjuntura.

Por exemplo: quando se analisam as políticas de imigração da União Europeia no atual cenário multicultural. Um pluralismo hegemônico, "europeu", que exclua atores sociais relevantes como ciganos e muçulmanos (portanto, realizado "do alto" - cujo movimento vem legitimado pelos juristas), não garante justiça, mas o primado de um determinado modelo econômico em detrimento de uma política plural.

O pluralismo jurídico precisa ser realmente pluralista para ser autêntico. É sempre um complemento, e não um substituto da democracia. Até lá, o ordenamento democrático-constitucional - tal qual construído no pós-guerra europeu e no pós-ditaduras na América Latina - tem primazia pelo consenso gerado por sua forma. Neste cenário, quem tem o poder de dizer o direito é uma questão política central: hoje convivem soberania popular e autoridade sapiencial (teórica ou empírica). Os juristas, por possuírem este segundo tipo de legitimidade, não são mais qualificados a ler a vontade popular que o parlamento; mas são técnicos especializados em rearranjar a polifonia democrática.

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Isso revela que esse "pós-modernismo jurídico", na verdade, não tem nos valores da modernidade o seu ponto de equilíbrio. Pauta-se por um relativismo em que os discursos e narrativas são (des)construídos pela hermenêutica19(DERRIDA, 2007). A massificação do fenômeno jurídico faz com que o parâmetro de bom seja o popular; e, em uma sociedade imagética, os juristas usam a lógica dos media para convencer o "auditório"20.

O Direito, que não mais necessariamente corresponderá ao que o Estado diz que ele deva ser, adquire caráter simbólico e discursivo. Simbólico, porque sua eficácia é discursiva e não fática: serve a modelar o imaginário social (o que faz com que ele seja visto enquanto um construtivismo autorreferencial). Flexível, porque atua em uma lógica de particularismo "glocal" (pensar global, agir local).

Este é o cenário no qual atuam os Direitos Humanos: dada a força limitada que possuem as cortes internacionais que tratam do tema, a eficácia de duas decisões é muito mais persuasiva pelos argumentos que performativa pelo seu enforcement21. Ainda, essa estratégia argumentativa consegue atuar tanto em discussões no plano macro das relações internacionais como na lógica do quotidiano que diuturnamente convive com a violação de seus postulados.

Por isso, cabe uma advertência sobre a perspectiva que entende a atuação dos Direitos Humanos por uma "Justiça Global". Esse léxico, embora liberte a discussão dos parâmetros clássicos do direito internacional (e, portanto, estatólatra), atrai a discussão para o campo da economia, saber que popularizou o termo "globalização" desde a virada do milênio. É justamente esse tipo de "Global" que se deseja colocar em xeque aqui.

Paolo Grossi22analisou de modo realista como se dá o direito na "era da globalização". Apontou, de um lado, características positivas como a libertação do monopólio estatal; a possibilidade de um direito não-textual, por meio das chamadas "boas práticas"; sua atuação em rede, e não hierarquicamente; e a hibridação dos sistemas jurídicos ocidentais (Common Law...

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