A desmutualização das bolsas de valores e os novos desafios da regulação dos mercados de capitais

AutorWalfrido Jorge Warde Jr.
Páginas128-137

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1. Objetivos e síntese de resultados

Propõe-se, este artigo, lançar algumas hipóteses acerca de efeitos futuros impostos pela crescente desmutualização das bolsas de valores no domínio da regulação privada.

Com esta reflexão pretende-se revelar indícios de processos competitivos - deflagrados pela transformação da "bolsa-associação" em "bolsa-empresa" e pela conseqüente proliferação de canais de negociação de ativos - que afirmam a existência de um crescente mercado de organização e administração de trocas econômicas de valores mobiliários.

Os argumentos expostos sugerem, ademais, diante das mudanças descritas - especialmente em face das novas fina-lidades das bolsas de valores na condição de organizações empresariais -, que resta comprometida sua isenção, e, portanto, que é inconveniente que se lhes atribuam, a exemplo do que se dá em alguns ordenamentos, amplíssimos poderes e competên-cias regulatórias.

2. O movimento de desmutualização das bolsas de valores sob os filtros analíticos fornecidos pelo Law & Economics

O movimento de desmutualização1 das principais bolsas de valores ao redor

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do mundo, a incluir a nossa Bolsa de Valores de São Paulo, será compreendido de modo mais adequado se for observado e estudado sob alguns filtros analíticos que nos são fornecidos pelo Law & Econo-mics, em especial pelo pensamento coa-siano, concernente aos fundamentos da organização empresarial.2

Coase revolucionou os pensamentos jurídico e econômico ao lançar explicações bastante inovadoras acerca dos fundamentos da criação e do desenvolvimento das firms que, por imperativos semânticos - dada a ausência de melhor termo equivalente -, nossa doutrina tem traduzido como "empresas". A tradução - considerado o sentido técnico-jurídico da palavra "empresa" - restringiria, em princípio, a aplicação da theory of the firm às organizações que têm causa e finalidade empresarial, isto é, que surgem e se desenvolvem sob a afetação de uma dada empresa econômica. A teoria coasia-na da empresa, todavia, expõe uma tese que, em princípio, aplicar-se-ia a qualquer organização - empresária ou não -, desde que inserta, por razões operacionais, no sistema econômico; aplica-se, portanto, também às bolsas de valores, na condição associativo-organizacional em que originariamente se estabeleceram.

Coase sugere, grosso modo, que essas organizações - as firms - surgem como conseqüência do desejo de diminuir custos de transação (transaction costs) normalmente experimentados nos mercados, pelo uso do sistema de formação de preços. Assim, por exemplo, dada organização empresarial dedicada à manufatura de sapatos ganharia suposta existência em razão do desejo de evitar os custos de transação decorrentes da mera aquisição dos sapatos, já que seu fabrico permitiria obtê-los a custos menores que os impostos pelos preços praticados no mercado.

A evolução desse tipo de análise, que afirma serem as organizações econômicas, no geral, instrumentos dedicados a minimizar custos de transação, leva a concluir que quando é internamente estudada e conhecida a natureza do relacionamento que se estabelece entre seus membros são identificados novos custos significativos.

Assim, se, por um lado, essas formas de organização são capazes de mitigar custos transacionais, por outro, em razão de comportamentos econômicos que tendem a se contrapor, em vista dos distintos (e, por vezes, conflitantes) interesses ostentados por seus membros, as firms também abrigam custos, chamados de agency costs, que podem se tornar tão expressivos quanto os custos impostos pelas trocas econômicas no mercado.3

Determinada organização será mais ou menos eficiente na medida em que for capaz de mitigar tanto os custos de transações, em geral, quanto, em particular, os custos de agência.

2. 1 Os fundamentos econômicos da "bolsa-associação"

Assumida como premissa a exatidão dessas proposições, não será equivocado concluir que as bolsas de valores surgiram do interesse dos operadores de se organizarem, no mercado de capitais, como forma de diminuir os custos de transação, especialmente aqueles custos associados ao acesso às ofertas (com o fim de negociar o

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melhor preço), ao monitoramento das trocas econômicas, à formalização jurídica e execução (liquidação) dos negócios, à autenticidade dos ativos, à informação sobre os emitentes desses ativos e sobre a maior ou menor probabilidade de serem satisfeitos os direitos subjetivos neles contidos, e assim por diante.

As bolsas, em decorrência de seu alto grau de especialização objetiva, afirmam-se, então, originariamente, por centralizar - sob a mesma organização econômica -o acesso a abrangente gama de "tarefas" capazes de diminuir todos esses custos de transação. Se para uma pessoa seria muito custoso ter acesso à informação e ao monitoramento adequado dos agentes e dos ativos, para várias pessoas - sob a forma da associação - esses custos se diluiriam.

Esses são, resumidamente, os fundamentos econômicos do aparecimento das bolsas de valores organizadas sob a forma de associações sem fins lucrativos ou de sociedades simples. Propomos que esse modelo organizacional seja aqui identificado como "bolsa-associação".

2. 2 Centralização e essencialidade: a "bolsa-associação" como organização monopolista

A convergência de interesses - entre os administradores das bolsas de valores, seus membros e as companhias listadas -, aliada ao fato de que as bolsas surgem em decorrência do desejo de algumas empresas de diminuírem seus custos de transação, e não de, diretamente, auferirem lucro (uma vez que o lucro era o objetivo de suas atividades individuais como intermediários financeiros), tornou dispensável que se organizassem, com o intuito de perseguirem os fins atribuídos às bolsas de valores, como empresa societária ("bolsa-empresa"). A criação, nesse contexto, de qualquer outra organização a oferecer os mesmos serviços que a bolsa de valores determinaria a assunção de elevadíssimos custos de transação; e, por isso, até o final do século passado as bolsas estabeleceram-se como organizações monopolísticas.

Esses motivos, que afirmam o asso-ciacionismo como forma de organização originária das bolsas de valores, explicam também por que, no princípio, se organizaram sob uma estrutura capaz de centralizar toda a negociação de ativos no mercado secundário, e não como um conjunto de organizações empresariais a competir entre si. Se os interesses convergem, não há, então, razões para que sejam representados por várias organizações, ao invés de por apenas uma, capaz de alcançar os ob-jetivos propostos.

2.2. 1 Os fundamentos da força vinculante do esquema de regulação privada produzido pela "bolsa-associação "

A centralização e a essencialidade funcional que caracterizam a atividade bursátil permitiram a criação de um importante esquema de regulação privada -a que se sujeitam companhias emissoras, intermediários e investidores - coordenado e supostamente submetido a regulação pública.4

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Desse modo, a atividade bursátil caracterizou-se pela homogeneidade entre seus membros, pelo monopólio na organização e administração - nos mercados secundários - de trocas econômicas de valores mobiliários emitidos por companhias listadas e por um esquema de auto-regulação coordenado e submetido às agências ou órgãos regulatórios da Administração Pública.5

2. 3 As causas do aparecimento da "bolsa-empresa"

O advento de novas tecnologias, entretanto, reduziu os custos atuais e potenciais experimentados pelos agentes nas trocas econômicas realizadas no mercado de capitais e, desse modo, contribuiu não apenas para um acesso facilitado à informação, mas também - em vista da internacionalização e dos cross borders investments - para um drástico aumento do âmbito do mercado.

Essas ocorrências foram determinantes para que as organizações bursáteis centralizadas perdessem a essencialidade que outrora as caracterizava. Permitiram e mesmo incentivaram, em muitos casos, a entrada de novos operadores no que se pode chamar de mercado de organização e administração de trocas econômicas de valores mobiliários no mercado de capitais.

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Nos Estados Unidos, por exemplo, as bolsas de valores e a NASDAQ já dividem esse mercado de organização e administração de trocas econômicas de valores mobiliários com vários e importantes concorrentes - a caracterizar o que Macey e O'Hara chamam de múltiplos trading venues6 - em mesas de negócios das grandes distribuidoras e corretoras de valores, e, principalmente, com os chamados Sistemas Alternativos de Negociação (Alterna-tive...

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