A convenção das Nações Unidas sobre contratos de venda internacional de mercadorias e o comércio internacional brasileiro

AutorEduardo Grebler
Páginas59-72

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1. Introdução

Até junho/2007, 70 países haviam adotado a Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Venda Internacional de Mercadorias ("Convenção"),1 elaborada pela Comissão das Nações Unidas para o Direito do Comércio Internacional (UN-CITRAL) para reger o comércio internacional de mercadorias entre partes situadas em diferentes Estados nacionais.2

Em vigor desde janeiro/1988, quando aderiram a ela os 11 primeiros Estados, a Convenção congrega países de todos os matizes culturais e políticos e em diferentes estágios de desenvolvimento econômico. São signatários da Convenção praticamente todos os países da União Européia (com exceção do Reino Unido), da América do Sul (Argentina, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela - esta última ainda não ratificou), todos os da América do Norte (Canadá, Estados Unidos, México), os grandes exportadores asiáticos (por exemplo: a China, Coréia e Cingapura) e mesmo Cuba.

A Convenção representou a última etapa do esforço de unificação do Direito sobre a compra e venda internacional de mercadorias, iniciado em 1930 pelo Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT). Esse propósito, temporariamente prejudicado pela II Grande Guerra, foi retomado ao início da década de 1960, com a celebração de duas convenções preparadas no âmbito da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado: uma sobre a formação dos contratos de venda internacional e outra sobre a compra e venda propriamente dita. Entretanto, esses instrumentos não obtiveram adesão ampla, por refletirem institutos jurídicos dos países de tradição romano-germânica mais que daqueles que seguem o sistema da common law.

Verificada a falta de adesão de um número significativo de países, decidiu a

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UNCITRAL - então uma agência das Nações Unidas recém-instalada- adotar como uma de suas primeiras missões a revisão e reconstrução dos textos das Convenções, elaboradas em 1964. O trabalho teve início em 1968 e foi concluído em 1980, unificando num só texto as duas Convenções anteriores e dando-lhes uma nova feição.

Quando o texto da Convenção foi concluído, em 1980, a globalização não era, ainda, o fenômeno abrangente em que mais tarde veio a se transformar. Entretanto, o ritmo de crescimento do comércio internacional já era tão significativo que impôs a criação de uma base jurídica comum sobre a venda internacional de mercadorias, de modo a superar - ou ao menos diminuir - as diferenças existentes entre os sistemas de direito civil e da common law, entre as práticas comerciais dos países mais desenvolvidos e daqueles em desenvolvimento, e entre os países então chamados capitalistas e aqueles de economia centralmente planificada.

Desde sua concepção, pois, a Convenção deveria constituir um instrumento do "direito internacional positivo", com a mais ampla aplicação mundial. Para alcançar este objetivo, seus redatores abraçaram a missão de produzir um texto aceitável para o maior número possível de países, mesclando soluções que fizeram da Convenção um texto jurídico de fonte plurina-cional.

O Brasil ainda não figura entre os países que subscreveram a Convenção. Os motivos pelos quais nosso país até agora se absteve de aderir a esse instrumento de uniformização do Direito não foram oficialmente divulgados. Contudo, é voz corrente entre os internacionalistas brasileiros que, assim como ocorreu em diversos países, o desinteresse na Convenção resulta de uma combinação de fatores difusos, alguns dos quais de cunho jurídico, mas principalmente da atitude da comunidade jurídica brasileira, do meio empresarial e do nosso Governo.

2. A visão nacional do Direito Internacional

Na maioria dos países a comunidade jurídica nacional tende a usar suas próprias leis como paradigma para a análise de instrumentos normativos internacionais. Essa análise se dá pela confrontação dos dispositivos do tratado com os do Direito nacional,3 de modo a pôr em evidência as discrepâncias entre as respectivas normas e compreender a ideologia que inspirou a redação do instrumento, em comparação com os standards em uso no seu próprio sistema legal.

Contudo, no caso de tratados internacionais de caráter normativo de direito privado, como é o caso da Convenção, uma abordagem meramente comparativa pode se revelar inadequada se não levar em conta o fato de que, conforme as regras de direito internacional privado, o direito substantivo aplicável a determinado negócio jurídico nem sempre será o Direito nacional.

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Com efeito, as regras que regem um contrato internacional normalmente são de Direito estrangeiro pelo menos para uma das partes, quando não para ambas. Isto se deve ao fato de que a determinação do Direito aplicável ao contrato resulta da norma sobre conflito de leis vigente no foro onde a ação for proposta, ou da vontade das partes quando essas normas admitirem a livre escolha da lei de regência do contrato.

É provável que cada uma das partes prefira seu próprio Direito para reger o negócio, em face do maior conhecimento e familiaridade da parte com suas próprias leis, além de um certo grau de desconfiança em relação a padrões legais estrangeiros.4 Contudo, ao menos uma delas terá que se submeter a um Direito que não o seu próprio Direito nacional, seja por força das normas de direito internacional privado aplicáveis, seja pelo maior poder de barganha da outra parte, quando for possível a escolha por elas.

Logo, é inteiramente equivocado supor que um Estado consiga preservar a aplicação de seu Direito nacional simplesmente por não aderir a um instrumento normativo internacional como a Convenção. De fato, em vista das considerações acima, não é possível afirmar com certeza que o Direito nacional de determinado país será sempre aplicável às transações comerciais que envolverem seus nacionais, pois a decisão sobre o Direito aplicável nem sempre será tomada pelos seus tribunais.

Sem perder de vista essa circunstância, a comparação entre os dispositivos da Convenção e os seus equivalentes no Direito Brasileiro dos contratos é um exercício válido, com o propósito de assinalar as diferenças existentes e avaliar se tais diferenças tendem, ou não, a dificultar ou a impedir a coexistência das normas nacionais e internacionais dentro do sistema jurídico brasileiro.

Em face disto, alguns dos dispositivos da Convenção tidos como de especial importância nos contratos de venda internacional de mercadorias serão apresentados ao lado das normas correspondentes do Direito Brasileiro sobre os contratos de compra e venda, de modo a que se possam extrair conclusões a respeito de suas convergências ou divergências.

3. O Direito Brasileiro atual sobre contratos de compra e venda de mercadorias

Um primeiro aspecto a considerar é que o Direito Brasileiro não contém regras de direito material específicas para os contratos de venda internacional de mercadorias, distintas das normas aplicáveis aos contratos celebrados no âmbito interno do país. O sistema brasileiro adotou uma visão unitária do direito contratual, tratando de igual modo os contratos celebrados entre partes domiciliadas no mesmo país e aqueles celebrados entre partes situadas em países diferentes. Nem no Código Civil de 1916 nem no de 2002, e tampouco no Código Comercial de 1850, há qualquer disposição endereçada especialmente ao contrato internacional.

Decorre disto que quando o Direito Brasileiro for aplicável a uma relação contratual qualquer, ainda que ajustada entre partes domiciliadas em país estrangeiro, as regras do Código Civil são as que regerão o contrato, às quais se somarão, em caráter apenas subsidiário, os usos do lugar de sua celebração,5 naquilo que não contrariar o direito positivo brasileiro.

Outro aspecto digno de nota é que, com a entrada em vigor do atual Código Civil, em janeiro/2003, o Direito Brasileiro dos contratos sofreu recente modernização. A nova lei civil substituiu tanto o

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Código Civil de 1916 como o Código Comercial de 1850, ambos obsoletos, diante das profundas modificações ocorridas ao longo do século passado nas relações sociais e econômicas na sociedade brasileira. Durante a longa vida dos dois Códigos revogados, centenas de modificações foram introduzidas neles e outras centenas de leis especiais foram promulgadas, lidando com uma multiplicidade de aspectos das relações sociais, em matérias tais como direito de família, propriedade intelectual, direitos reais, responsabilidade civil e empresas - para citar apenas algumas. A despeito disto, os princípios do direito dos contratos no campo da compra e venda permaneceram basicamente intocados por toda a vida do velho Código Civil (salvo pela notável exceção do Código de Defesa do Consumidor, de 1990).6

O Código Civil de 2002 introduziu novos conceitos no Direito Brasileiro dos contratos. Duas cláusulas gerais (Generalklauseln)7 merecem menção especial, porque não existiam no antigo Código Civil nem na legislação extravagante sobre direito civil e comercial: uma que declara que a liberdade de contratar tem por base e por limite a função social do contrato8 e a outra que estabelece que, na celebração e na execução do contrato, as partes devem observar os princípios da honestidade e da boa-fé.9 Como corolário da primeira cláusula geral, entende-se que nenhum contrato valerá se contrariar a função social da propriedade e do contrato - o que se considera matéria de ordem pública.10 O corolário da segunda cláusula geral é que o conceito de boa-fé objetiva foi erigido em requisito de todo negócio jurídico regido pelo Direito Brasileiro.11

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