A decência do trabalho

AutorFrancisco Ferreira Jorge Neto/Jouberto de Quadros Pessoa Cavalcante
CargoDesembargador do TRT 2ª região/Professor da mackenzie
Páginas46-54

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O objetivo de diversos organismos internacionais e da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é a proteção da pessoa e dos inúmeros direitos que formam o patamar mínimo que garanta a dignidade da pessoa humana, entre eles o trabalho decente.

Nessa busca, não só a OIT como outros países e organismos internacionais estabelecem agendas para o implemento do trabalho decente.

Como mecanismo de obtenção do trabalho decente, é inegável a importância – não só normativa, como também de políticas públicas e privadas – da valorização da igualdade salarial por gênero e raça.

No presente trabalho, após analisarmos diversos dados econômicos sobre a desigualdade na América Latina, trataremos da proteção jurídica internacional – princípio da igualdade (substancial e formal) e de não discriminação e seus desdobramentos.

1. A desigualdade que se arrasta pelo século 21

Seguramente, a questão da desigualdade de gênero e raça no trabalho é o reflexo de vários “problemas” históricos, culturais, sociais, econômicos e de nível educacional. Contudo, para que a questão não se apresente desassociada da realidade do continente, procuramos trazer informações sobre a desigualdade na seara do trabalho, em especial no tocante à questão salarial (gender pay gap).

A OIT assinala que a “desigualdade salarial é um problema persistente e universal”. No âmbito mun-dial, em um quadro geral (2016), a OIT estima que as mulheres ganhem 77% do salário que os homens recebem para executar o mesmo tipo de função. Claro que a dimensão dessa diferença salarial varia de acordo, entre outros, com o setor, a profissão, o grupo de trabalhadores, o país, além de se alterar ao longo do tempo.

No Relatório Global sobre Salários 2016/2017, quanto aos salários mais altos, a OIT indica que na Europa:

(a) os 10% dos trabalhadores mais bem pagos recebem em média 25,5% do total dos salários pagos a todos os empregados em seus respectivos países, o que é quase o mesmo que os 50% que recebem os salários mais baixos (29,1%); (b) a parcela recebida pelos 10% mais bem pagos é ainda maior em algumas economias emergentes, como o Brasil (35%), a Índia (42,7%) e a África do Sul (49,2%); (c) a desigualdade salarial é ainda mais acentuada para as mulheres. Embora a diferença salarial geral por hora entre homens e mulheres na Europa seja de cerca de 20%, a diferença salarial entre homens e mulheres no grupo do 1% de

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trabalhadores mais bem pagos chega a cerca de 45%. Entre homens e mulheres que ocupam cargos de dire-tores executivos e estão entre o 1% de trabalhadores mais bem pagos, a diferença salarial entre homens e mulheres é acima de 50%.

Essas questões se mostram amplas e indicam existir diferenças salariais envolvendo outros critérios como idade e a própria maternidade. A título de exemplo, no Reino Unido as empregadas mães chegam a ganhar até 25% menos do que as empregadas que não o são. Na Alemanha esta diferença é de 15%, em Portugal é de 10% e na Espanha de 5%.

A questão se mostra mais aguda em algumas regiões, como a América Latina e Caribe, que são consideradas as regiões mais desiguais do mundo.

O Relatório de Desigualdade Global do Gênero (2016) do Fórum Econômico Mundial indica que o Brasil, dentre 144 países pesquisados, ocupa a 129ª posição no tocante à igualdade salarial entre gêneros. Para que seja possível a equiparação dos salários, respeitando-se os atuais índices de crescimento econômico, o Brasil necessitaria de 95 anos para obtê-la.

Em relação à diferença decorrente de distinção de gênero, o estudo da Organização das Nações Unidas (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – Cepal) indica que o problema antecede às discriminações no trabalho e é bem mais amplo, envolvendo, por exemplo, oportunidades e empregabilidade. Segundo a Cepal, em 2008, 31,6% das mulheres com mais de 15 anos não tinham renda própria, enquanto o índice era de 10% entre os homens. Já entre os desempregados, 8,3% das mulheres encontravam-se nessa situação e entre os homens o índice era de 5,7%.

Estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), denominado New Century, Old Disparities: Gender and Ethnic Wage Gaps in Latin America (2009), demonstra ainda a existência de grandes diferenças salariais relacionadas a gênero e raça na Amé-rica Latina. Nesse estudo, foram analisadas 18 nações latino-americanas.

A pesquisa do BID demonstrou que os homens continuam ganhando mais que as mulheres em todas as faixas etárias. As mulheres ganham salário menor (em média, 10%) que os homens, mesmo com melhor nível de instrução. Contudo, quando os economistas comparam homens e mulheres com a mesma idade e nível de instrução, a diferença salarial aumenta para 17%. As diferenças salariais variam muito nos diver-sos países do continente, sendo que na Nicarágua a diferença é de 28% e no Brasil é de 30% (entre homens e mulheres, com a mesma idade e nível de instrução).

Os dados demonstram que, em geral, a menor diferença salarial por gênero é encontrada entre pessoas mais jovens com nível universitário e as maiores discrepâncias são encontradas entre trabalhadores com salários mais baixos, educação secundária incompleta e moradores de áreas rurais.

Além disso, os dados mostram que a diferença salarial por gênero aumenta com a idade e é ligeiramente mais alta entre trabalhadoras com filhos.

Outro ponto do estudo é a diferença salarial por raça.

Nesse aspecto, o estudo analisou as causas de diferenças salariais entre as minorias (indígenas e afrodescendentes) e a população branca nos países que dispunham de dados sobre o tema (Brasil, Bolívia, Chile, Equador, Guatemala, Peru e Paraguai).

O levantamento feito indica que, em uma média simples dos salários nesses países, as não minorias ganham 38% a mais que as minorias. Analisando outros dados, como idade, gênero e nível de instrução, a discrepância cai para 28%. No Brasil, a diferença salarial decorrente do critério étnico é de 39% (analisado isoladamente) e, quando avaliado com o nível de instrução, cai para 30%. O que se explica pelo baixo nível de escolaridade desses grupos no país.

2. Princípio da igualdade

A igualdade perante a lei visa à correção da desigualdade natural entre os homens. Os seres humanos são desiguais pela natureza, cada um com suas aptidões, todavia, sem exceção, todos devem ter um tratamento justo em face da lei.

Celso Ribeiro Bastos afirma que a igualdade subs-tancial denota o tratamento uniforme de todos os homens. Não se trata, como se vê, de um tratamento igual perante o direito, mas de uma igualdade real e efetiva perante os bens da vida”.

A noção de igualdade posta nas ordens constitucionais contemporâneas reflete mais o ideal formal do que o material ou substancial.

Nessa perspectiva, a igualdade formal significa o direito de todo cidadão não ser desigualado pela lei senão em consonância com os critérios albergados ou ao menos não vedados pelo ordenamento constitucional”.

O ideal da igualdade teve

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transladada a sua topografia. Deixou de ser um direito individual tratado tecnicamente como os demais. Passou a encabeçar a lista destes direitos, que foram transformados em parágrafos do artigo igualizador. Esta transformação é prenhe de significação. Com efeito, reconheceu-se à igualdade o papel que ela cumpre na ordem jurídica. Na verdade, a sua função é de um verdadeiro princípio a informar e a condicionar todo o restante do direito. É como se tivesse dito: assegura-se o direito de liberdade de expressão do pensamento, respeitada a igualdade de todos perante este direito. Portanto, a igualdade não assegura nenhuma situação jurídica específica, mas na verdade garante o indivíduo contra toda má utilização que possa ser feita na ordem jurídica. A igualdade é, portanto, o mais vasto dos princípios constitucionais, não se vendo recanto onde ela não seja impositiva.

Além do princípio da igualdade estar previsto de forma ampla no universo normativo internacional, também a igualdade no trabalho e no emprego é destacada em alguns diplomas internacionais

3. O princípio da igualdade no direito internacional

Consagrado pela Revolução Francesa (1789), o princípio da igualdade encontra-se presente em diversos...

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