A decisão do STF sobre a união homoafetiva: uma versão pragmática da linguagem constitucional

AutorRachel Nigro
CargoProfessor adjunto II do Departamento de Direito da PUC-Rio, ministrando as disciplinas Filosofia do Direito, Teoria do Direito e Filosofia Constitucional. Possui Graduação em Educação Física (1993) e Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Mestrado em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio, Mestrado em Filosofia...
Páginas157-183
A decisão do STF sobre a união
homoafetiva: uma versão pragmática da
linguagem constitucional
Rachel Nigro*
1. Apresentação do argumento
Os casos polêmicos julgados recentemente pelo Supremo Tribunal Fe-
deral (STF) fomentaram uma intensa discussão sobre o papel desempe-
nhado por uma corte constitucional nas democracias contemporâneas1. A
partir da f‌ilosof‌ia pragmática da linguagem2, este artigo pretende cotribuir
para esse debate, usando como referencial teórico a concepção de demo-
* Professor adjunto II do Departamento de Direito da PUC-Rio, ministrando as disciplinas Filosof‌ia do
Direito, Teoria do Direito e Filosof‌ia Constitucional. Possui Graduação em Educação Física (1993) e Direito
pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Mestrado em Direito Constitucional e Teoria do Estado
pela PUC-Rio, Mestrado em Filosof‌ia pela PUC-Rio e Doutorado em Filosof‌ia pela Puc-Rio. E-mail: rachel.
nigro@gmail.com
1 Destaco, nesse sentido, os “casos difíceis” decididos recentemente pelo STF e que envolveram uma leitura
moral da Constituição, como a Adpf 186 (Cotas) que decidiu pela constitucionalidade das políticas de ação
af‌irmativa a partir de uma interpretação do princípio da igualdade (art.5º, caput, CF), a Adpf 54 (Anencefa-
lia), em que se derivou do princípio da dignidade humana (art.1º, III), assim como de um conceito atípico
de vida, a possibilidade de antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos;a ADI 4578 (Ficha Limpa)
que relativizou a leitura do art. 5˚ LVII - princípio da presunção de inocência - que havia sido alargado para
o âmbito eleitoral; a ADI 153 sobre a constitucionalidade da Lei da Anistia, dentre outros.
2 Desenvolvo melhor a noção de pragmática na parte f‌inal deste artigo. Por ora, basta considerar a prag-
mática de modo amplo, como um desenvolvimento da f‌ilosof‌ia ordinária da linguagem que entende a lin-
guagem como ação, revelando sua função de 'constituição de mundo' (recriação, ressignif‌icação, interação,
comunicação) e não de simples descrição da realidade. A partir da 'virada linguística' da f‌ilosof‌ia contempo-
rânea, diferentes enfoques sobre o estudo da linguagem se desenvolveram. O 'tronco' da pragmática reúne
vários ramos, como o ramo hermenêutico (Heidegger, Gadamer), expressivista (Herder, Taylor), ramo ordi-
nário (Wittgenstein), performativo (Austin, Grice, Strawson), ramo comunicativo e interativo (Humboldt,
Habermas), além do ramo analítico.
Direito, Estado e Sociedade n.41 p. 157 a 183 jul/dez 2012
Revista41 100413.indd 157 10/04/2013 12:06:27
158
cracia constitucional de Ronald Dworkin e o constitucionalismo discursivo
de Robert Alexy. A partir de uma visão mais ampliada da função da jurisdi-
ção constitucional na democracia brasileira, busco defender a legitimidade
da decisão do STF sobre a união homoafetiva (Adpf 132) e refutar a crítica
de “ativismo judicial” que tal decisão recebeu.
Assumindo que a interpretação constitucional de princípios, por ser
indissociável de uma argumentação prática moral, conduz a uma recons-
trução do texto constitucional, este artigo busca enfrentar a frequente crí-
tica de que a jurisdição constitucional invade a competência do legislador.
Nesse sentido, proponho que, sobretudo quando envolve a tensão entre
direitos fundamentais e soberania popular, não é possível entender a emer-
gência da nova ordem jurídica constitucional se não compreendermos o
papel do tribunal constitucional na defesa de direitos fundamentais, em
cujas decisões aparece a problemática da indeterminação do direito3. Nesse
sentido, a leitura moral da constituição, com a disputa pelo sentido dos
valores que lhes são subjacentes, torna-se fator decisivo para delimitar as
novas funções das cortes constitucionais e def‌inir se uma decisão foi ‘ati-
vista’ (extrapolou os limites do texto) ou representou apenas uma legítima
atuação da corte, consequência da ‘judicialização das relações sociais’4.
Como exemplo, a decisão favorável ao reconhecimento da união ho-
moafetiva como entidade familiar (Adpf 132)5, recebida com aplausos por
3 HABERMAS, 1997, p. 304.
4 O trabalho de Luis Roberto Barroso pode ser indicado como referência sobre a questão na teoria constitu-
cional brasileira: BARROSO (2008). Sobre o fenômeno mais amplo da judicialização, a obra pioneira sobre
a questão no Brasil é: WERNECK VIANNA et al., 1999. Sobre as distinções entre ambos os fenômenos e
que extrapolam os objetivos deste artigo, ver: TATE; VALLINDER, 1995). A distinção que importa ressaltar
para o argumento proposto é entre a atuação 'ativista' da corte constitucional e 'ativismos judiciais' em geral,
rótulo que envolve a atuação de juízes monocráticos e de tribunais infra-constitucionais na aplicação direta
de princípios constitucionais como fundamento jurídico de suas decisões. Esse tipo de ativismo judiciário
não será objeto de análise. É importante manter tal distinção em mente.
5 No dia 05 de março de 2011 o STF reconheceu, por unanimidade, a união homoafetiva como entida-
de familiar. Tal questão chegou às portas do Supremo através de três ações distintas que se reuniram no
mesmo julgamento: uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin 4277), uma ação de descumprimento
de preceito fundamental (Adpf 132) e a (Adpf 178) proposta pela Procuradoria Geral da República. Todas
alegaram que, dada a omissão do legislativo federal sobre o assunto, o não reconhecimento da união homo-
afetiva estaria contrariando preceitos fundamentais como igualdade, liberdade e o princípio da dignidade
da pessoa humana, todos da Constituição Federal. As ações solicitavam a interpretação do artigo 1.723 do
Código Civil conforme a Constituição Federal. Ambos os pedidos sustentavam que o não reconhecimento
das uniões homoafetivas fere os princípios da dignidade humana (artigo 1º, III); da igualdade (artigo 5º,
caput) da vedação de discriminação odiosa (artigo 3º, V); da liberdade (artigo 5º, caput) e da proteção à
segurança jurídica (artigo 5º, caput), todos da Constituição de 1988.
Rachel Nigro
Revista41 100413.indd 158 10/04/2013 12:06:27

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT