Decolonialidade e estudos criticos do discurso: convergencias para abordagens antirracistas no Brasil/Decoloniality and critical discourse studies: convergences for anti-racist approaches in Brazil.

AutorSilva, Caroline Fernanda Santos da
CargoREVISTA EM PAUTA

Introducao

A presente proposta de estudo busca apresentar uma revisao de bibliografia a respeito dos temas em destaque, com o objetivo de compreender, analisar e problematizar a forma como os estudos criticos do discurso (ECD) e a perspectiva da decolonialidade podem convergir para uma abordagem antirracista no Brasil. Tal proposicao parte de um compromisso etico-politico que busca estrategias para por em pauta o racismo no Brasil, rompendo com a logica do silenciamento que prevalece nas discussoes da populacao em geral e, de forma especial, no ambiente academico - onde a quase ausencia desse tema chama atencao para o numero reduzido de docentes negros, ao mesmo tempo em que denuncia a pouca habilidade ou pouca aderencia dos professores nao negros em abordar o tema.

Essa discussao se torna relevante na medida em que tanto a ideia de decolonialidade quanto os estudos criticos do discurso remetem a um tipo de conhecimento que deve ser produzido a partir das culturas subalternas ou dos grupos dominados, conforme sera abordado ao longo do texto. Portanto, interessa para estas perspectivas refletir sobre o papel desempenhado pelo conhecimento em sua relacao com a sociedade e sobre a forma como esse conhecimento se relaciona com tais grupos subalternos ou dominados - onde se insere a populacao negra no Brasil.

Diante da constatacao de que o racismo faz parte das relacoes de dominacao e exploracao na sociedade capitalista, o antirracismo se apresenta como um conjunto de posturas ou comportamentos, eticos e tambem politicos, a serem desempenhados pelas pessoas na convivencia em sociedade. Contudo, a possibilidade do desenvolvimento de posturas antirracistas esta diretamente associada a possibilidade primeira de reconhecer a presenca do racismo em nossa sociedade.

Este artigo esta organizado em dois subitens, alem de introducao e consideracoes finais. Inicia-se o texto com uma breve reflexao sobre os fundamentos da producao de conhecimentos, apresentando importantes contribuicoes e questionamentos de autores que abordam a perspectiva decolonial. Em seguida, o segundo item fara uma breve introducao aos estudos criticos do discurso, situando a relevancia de sua utilizacao para a compreensao, abordagem e analise do racismo no Brasil.

Breve reflexao sobre a perspectiva decolonial, ou por que mencionar o lugar de fala

Ha muito se discute sobre o papel da ciencia em sua relacao com o mundo, seja na area das ciencias sociais, seja em qualquer outro campo cientifico. Nesse contexto, alguns questionamentos sao constantes, tais como: qual a funcao do conhecimento cientifico? Onde se aplica? Qual conhecimento pode ser considerado cientifico? Essas sao questoes que se relacionam diretamente com o entendimento sobre o papel e a funcao do pesquisador nos diferentes processos de producao de conhecimento.

Durante longo periodo, a ciencia creditou a funcao seletiva de definir a validade e a credibilidade do conhecimento a dita "neutralidade cientifica", amplamente difundida no meio cientifico em geral. Essa pretensa neutralidade ancorou-se em um tipo de conhecimento que partia da valorizacao de uma reflexao interna, que (pensava) nao carregar influencias de suas experiencias e sensibilidades - essa seria a chave para a producao de um conhecimento valido e verdadeiro, apto a ser universalizado (COSTA, 2018).

Essa tradicao, caracteristica do pensamento eurocentrado/ocidental, se apresentou durante muito tempo como a "unica forma" de producao de conhecimento, que, ao se considerar universal, negou a capacidade/possibilidade de outros para tal producao cientifica. Diversos autores (1) sugerem que essa negacao epistemologica, que tambem pode ser entendida como uma negacao ao direito de alcar-se como sujeito produtor de conhecimento, se transforma, em ultima analise, em uma negacao do direito a propria existencia. O poema de Luiz Gama (1954, p. 130), escritor negro que viveu no Brasil Pos-Abolicao, descreve tal situacao:

Desculpa, meu amigo,

Eu nada te posso dar;

Na terra que rege o branco

Nos privam te de pensar! [...]

Ribeiro (2017), ao refletir sobre tal aspecto, cita ideias ja desenvolvidas por Lelia Gonzales, importante ativista e intelectual negra brasileira. De acordo com as autoras, o privilegio social e o que garante o privilegio epistemico, uma vez que o modelo valorizado e universal de ciencia e branco:

A consequencia dessa hierarquizacao legitimou como superior a explicacao epistemologica eurocentrica conferindo ao pensamento moderno ocidental a exclusividade do que seria conhecimento valido, estruturando-o como dominante e assim inviabilizando outras experiencias de conhecimento. (RIBEIRO, 2017, p. 24-25).

Desse modo, torna-se fundamental a reflexao de Maldonado-Torres (2007, p. 145), segundo a qual: "a desqualificacao epistemica se converte em instrumento privilegiado da negacao ontologica". Com isso, entendese que o conhecimento cientifico, assim organizado e apresentado, configurou-se enquanto instrumento de dominacao e hierarquizacao social. Isso corrobora as ideias de Santos e Meneses (2009), quando introduzem a ideia de "pensamento abissal" (2) , segundo a qual esta negacao produz, para alem da negacao de seu estatuto epistemologico, a consequente percepcao de que os seres humanos estao no Norte e aqueles que estao no Sul sao desprovidos de humanidade.

Assim configurou-se a logica do "universalismo abstrato", que e fortemente criticada pela perspectiva decolonial. Costa (2018) e outros autores apontam que esse "universalismo abstrato" se caracterizou como a principal sustentacao do projeto moderno/colonial, que esta por tras da ideia de colonialidade do poder.

A colonialidade do poder, segundo Costa (2018, p. 121): "[...] refere-se a constituicao de um padrao de poder em que a ideia de raca e o racismo se constituiram como principios organizadores da acumulacao do capital em escala mundial e das relacoes de poder no sistema mundo [...] moderno/ocidental". Assim, entende-se que, na nova logica mundial que se iniciou com a modernidade - cuja formacao comecou com a escravizacao da populacao africana, dentre outros processos de violencia mundo afora -, a diferenca entre conquistadores e conquistados foi codificada a partir da ideia de raca (QUIJANO, 2005). De acordo com Almeida (2017, p. 40):

[...] processos de violencia foram utilizados no capitalismo contra a...

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