Defendendo o caminho mais trilhado, na demarcação entre o regime da avaliação inicial do risco e o do seu agravamento subsequente

AutorMaria In?s de Oliveira Martins
Páginas517-546
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23 .
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Maria Inês de Oliveira Martins
I. PONTO DE PARTIDA
Configure-se o caso do dono de um imóvel abrangido por seguro compreen-
sivo residencial que detecta uma praga de cupim e, convocando uma equipa
técnica, apura que a infestação já existia, sem que fosse perceptível, ao tempo da
celebração do contrato de seguro. Pense-se agora na hipótese do segurado que,
abrangido por seguro de saúde, detecta durante um exame de rotina um pro-
blema oncológico, o qual na verdade já o afectava ao tempo da celebração do
contrato. Pense-se ainda no caso em que o segurador, que nunca perguntou pelos
edifícios vizinhos da fábrica do segurado, apercebe-se em uma inspecção posterior
de que esta fica com um arquivo de película cinematográfica, material altamente
inflamável.
Em qualquer um destes casos, encontraremos um problema de contornos idênti-
cos: o risco – ou seja, a probabilidade de ocorrência de sinistro, perante as circuns-
tâncias que a influenciam – percebido pelo segurador é menor do que o real; e já é assim
desde que o contrato foi celebrado.
Identificado o problema, o intérprete ver-se-á perante um dilema quanto ao
modo mais correcto de o enquadrar. Perante ele, duas possibilidades. Deverá o pro-
blema ser enquadrado no regime da avaliação inicial do risco – que, no ordenamento
brasileiro, tem actualmente por sede o art. 766. do Cód. Civil –, atendendo a que as
circunstâncias em causa já se verificavam no momento da celebração do contrato?
Ou deverá ele ser enquadrado no regime da modificação (por agravamento) do risco na
vigência do contrato – com sede no art. 769 do Cód. Civil –, já que é este que permite
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com mais facilidade reabrir o contrato para o adequar ao nível de risco que real-
mente se verifica, ou eventualmente fazê-lo cessar?
É este dilema que o presente escrito procura resolver.
Veremos que há uma convergência no modo como vários ordenamentos
estrangeiros enquadram esta questão, e procuraremos de seguida apurar se tal
convergência é bem fundada – o que nos fará perguntar pela função e estrutura
do contrato de seguro, bem como de cada um dos regimes candidatos à aplicação.
Lancemo-nos, pois, ao caminho.
II. A RESPOSTA CONVERGENTE DO DIREITO COMPARADO E
AS COORDENADAS ESSENCIAIS PARA UMA RESPOSTA BEM
FUNDADA: A FINALIDADE E MODO DE FUNCIONAMENTO DO
CONTRATO DE SEGURO E DOS DOIS REGIMES CANDIDATOS
§ 1. A reveladora convergência do Direito comparado. O ponto de partida para
uma resposta fundamentada: finalidade e modo de funcionamento do contrato.
Numa primeira abordagem linear, as duas respostas alternativas à questão
que nos colocamos parecer-nos-iam plausíveis. Uma vez que a circunstância já se veri-
ficava ao tempo da celebração do contrato, diríamos que deveria valer o regime da avalia-
ção inicial do risco, que rege esse momento da dinâmica contratual. Já pensando que
o segurador não contemplou tal circunstância nos seus cálculos, seríamos levados a defen-
der o enquadramento no regime da modificação do risco na vigência do contrato, para
permitir que a passasse a ter em consideração.
Porém, olhando o Direito comparado mais próximo, encontramos uma assi-
nalável convergência num dos sentidos: as circunstâncias já existentes ao tempo da
celebração do contrato devem ser apreciadas pelo regime da avaliação inicial do risco, e
não pelo regime da sua modificação subsequente.1
1 MARTIN, Anton. Sachversicherungsrecht, Kommentar zu den allgemeinen Versicherungsbedingungen für Hausrat,
Wohngebäude, Feuer, Einbruchdiebstahl und Raub, Leitungswasser, Sturm einschließlich Sonderbedingungen und Klau-
seln. Munique: C. H. Beck’sche, 1992, p. 1048; VOLKER, Hahn. “§ 20. Gefahrerhöhungen”. In: Beckmann,
Roland Michael; Matusche-Beckmann, Annemarie (coord.). Versicherungsrechtshandbuch. München: C. H.
Beck, 2015. Disponível em: http://beck-online.beck.de/. Acesso em: 15 jul. 2017, nº 18; Reusch, Peter
“VVG § 23 Gefahrerhöhung”. Münchener Kommentar zum Versicherungsvertragsgesetz, I. München: C. H.
Beck, 2016. Disponível em: http://beck-online.beck.de. Acesso em: 12 abr. 2019, nº 110; “obviamente,
não são tomadas aqui em consideração as declarações dos contraentes (que, diferentemente, gravitam em
torno da disciplina dos arts. 1892, 1893 [declaração inicial do risco], mas sim a mutação objectiva do risco, veri-
ficada após a contratação, seja a que título for” (BRACCIODIETA, Angelo. Il contratto di assicurazione, Disposizioni
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