Defensoria publica e dialogo institucional em saude: a experiencia de Brasilia-DF/Public defense and institutional dialogue on health: the Brasilia-DF experience.

AutorAsensi, Felipe
  1. Introducao: o direito e a saude

    A relacao entre saude e direito revela, em termos sociologicos, um dos principais desafios do mundo contemporaneo. O paradigma formalista do direito, assim como o paradigma intervencionista da saude, tem recebido nos ultimos 20 anos reconfiguracoes das mais diversas. Isto ocorre, dentre outros motivos, por razoes institucionais, tais como o fortalecimento da saude como um direito, mas tambem por razoes culturais, na medida em que sao constituidos espacos estrategicos de reivindicacao, alem de uma maior compreensao dos cidadaos a respeito dos limites e possibilidades de seus respectivos direitos. Mais propriamente, a aproximacao entre campos tao solidos e com pressupostos nao necessariamente congruentes gera uma nova forma de concebe-los, que esteja calcada na interdisciplinaridade.

    Qualquer esforco de reflexao sobre a "fusao de horizontes" entre direito a saude, parafraseando Hans-Georg Gadamer (1999 [1960]), significa um esforco de ampliacao da propria contribuicao que estes campos podem oferecer. Atualmente, direito e saude podem ser concebidos como campos integrados, interdependentes e mutuamente constituintes e constituidos um pelo outro. Em primeiro lugar, e possivel afirmar que as relacoes sociais sao mediadas pela nossa concepcao de sujeitos de direitos, de um lado, e de seres humanos, de outro. Portanto, enquanto sujeitos de direitos e seres humanos, nao e possivel afastar a relevancia da relacao entre direito e saude na propria organizacao e funcionamento do "corpo social". Medicamentos, tratamentos, normas juridicas e decisoes judiciais, antes de serem meros produtos institucionais, sao oriundos de relacoes sociais que se estabelecem em sociedades especificas e orientam as suas praticas sociais. De modo algum esta relacao e isenta de contradicoes e desafios, sobretudo porque estamos tratando de campos com trajetorias cientificas, culturais e politicas distintas.

    No periodo pos-constituinte, que cristalizou as mudancas pelas quais as instituicoes juridicas passaram no Brasil, observa-se um crescimento consideravel de pesquisas (1) que buscam analisar a chamada judicializacao, inclusive da saude. No cenario contemporaneo, observa-se uma pluralidade de instituicoes, atores e interpretes que tambem atuam decisiva e legitimamente na construcao e garantia de direitos, especialmente na via judicial.

    De "poder timido", o Judiciario contemporaneo passou a ocupar uma centralidade consideravel no processo de resolucao de conflitos e efetivacao de direitos. Como exemplo desta "timidez" institucional, e possivel citar Barao de Montesquieu (1996 [1748]), que concebe o Judiciario como um mero interprete da lei. Diante da impossibilidade fatica da "lei falar por si so", seria preciso a figura de um ser humano para expressar o que consta em seu texto, alem de tambem estabelecer o alcance desta norma. Este ser humano, por ser investido da autoridade estatal de resolver conflitos e efetivar direitos, deve aplicar a lei contendo-se a sua literalidade. Conforme salienta Badinter, "assim como o juiz, porque ele e competente para resolver o conflito, para dizer o Direito, e que o Direito exprime, dentro de toda a sociedade, um sistema de valores, de modo que este juiz apareca como depositario e defensor destes valores" (Badinter, 2003, p. 10).

    O Judiciario se apresenta como um ator importante no processo de efetivacao de direitos, cuja proeminencia, de fato, advem de suas competencias e atribuicoes constitucionais. Porem, e preciso considerar que ha outras formas de envolvimento de instituicoes juridicas que nao necessariamente ensejam a judicializacao de conflitos, pois tais instituicoes podem atuar independente da existencia de processos judiciais.

    E importante salientar que as concepcoes construidas pelos estudos de judicializacao podem possuir limitacoes de diversas naturezas para pensar o Judiciario no Brasil e em outros paises. A assuncao do juiz como a referencial primaz na efetivacao do direito pode propiciar uma a supervalorizacao da dinamica judicial. Tal valorizacao tem sido operada em detrimento de reflexoes sobre outras formas juridicas e nao-juridicas de aplicacao e efetivacao de direitos, a exemplo a mediacao extrajudicial.

    E esta possibilidade de atuar de forma independente do Judiciario que permite a proeminencia e o destaque de outras instituicoes juridicas--tais como a Defensoria Publica e o Ministerio Publico - na efetivacao de direitos sociais e coletivos que exigem rapida prestacao, tais como a saude. Tao importante quanto o estudo dos fins de uma acao judicial, e o dos meios utilizados pelas diversas instituicoes para efetivar direitos. Isso permite pensar uma nova forma de atuacao das instituicoes juridicas que vai alem da mera judicializacao, o que amplia ainda mais as reflexoes sobre seu protagonismo no tocante a efetivacao de direitos e implementacao de politicas publicas.

    Mais precisamente, as relacoes sociais podem submeter-se tanto a uma juridicizacao (conflitos que nao sao levados ao Judiciario, mas que sao discutidos sob o ponto de vista juridico, principalmente em momentos pre-processuais) quanto a uma judicializacao (conflitos que sao levados ao Judiciario na forma de acao civil publica ou algum outro instrumento processual). Na medida em que ha diversas instituicoes juridicas que nao se utilizam necessariamente do Judiciario para realizar suas acoes, observa-se um contexto em que os conflitos sao discutidos sob o prisma do direito, mas evita-se levar o conflito ao Judiciario--isto e, evita-se a judicializacao do conflito (2).

    No Brasil, a superacao da concepcao de direito como expressao da lei tambem encontrou eco no que se convencionou denominar de doutrina brasileira da efetividade, que possui, dentre os seus expoentes, o jurista Luis Roberto Barroso. O argumento central desta perspectiva consiste no seguinte: para alem da eficacia juridica que uma norma possui, ou seja, a sua possibilidade de produzir efeitos num ordenamento juridico porque formalmente valida, e preciso refletir sobre a eficacia social das normas, ou seja, a possibilidade de produzirem efeitos concretos no cotidiano das praticas dos atores sociais.

    Ao partir do pressuposto de que o direito existe para se realizar, a ideia de efetividade significa o desenvolvimento concreto da funcao social do direito. "Ela representa a materializacao, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximacao, tao intima quanto possivel, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social" (Barroso, 2006, pp. 82-83). Portanto, busca pensar o desenvolvimento dos direitos na pratica, de modo a superar a perspectiva formalista que se traduz na mera eficacia juridica. Isto se torna possivel, inclusive, para pensar o direito a saude numa perspectiva nao-positivista e nao-judicial.

    O objetivo deste artigo consiste em analisar a interacao entre a Defensoria Publica e a gestao na efetivacao do direito a saude sob o prisma da judicializacao e da juridicizacao. Para tal, serao utilizados os dados de uma pesquisa que realizamos em parceria com o Conselho Nacional de Justica em 2013 e 2014 em Brasilia-DF.

    Por se tratar de uma metropole e da capital do pais, Brasilia enfrenta desafios de interlocucao entre os Poderes na efetivacao do direito a saude. Inclusive, a distancia geografica entre os atores politicos e juridicos--que nao ocorreria em cidades menores--e um fator que contribui com tal distanciamento. Como se trata da capital federal, em Brasilia tambem estao as sedes dos tres Poderes, Ministerios, Autarquias, etc., o que faz com que o dialogo institucional seja pulverizado e heterogeneo.

    No caso da saude, observa-se uma peculiaridade em Brasilia: por estar no Distrito Federal, a atuacao das instituicoes juridicas e politicas deve englobar as competencias de municipio e de estado. Isto faz com que as responsabilidades na efetivacao da saude sejam ainda maiores e gera desafios que vao resultar na judicializacao da saude.

    A experiencia de Brasilia se desenvolveu a partir de uma iniciativa do Comite Distrital de Saude. O Comite foi criado a partir de uma Resolucao do CNJ, que estabeleceu a necessidade de as unidades da federacao atuarem no monitoramento das demandas judiciais em saude, alem de proporem medidas concretas de aperfeicoamento do Judiciario na efetivacao desse direito. Neste sentido, o Comite fomentou e organizou a criacao de uma estrutura que buscasse promover a conciliacao pre-processual de demandas que envolvam insumos, produtos e servicos de saude. Em 2013, foi criada a Camara Permanente Distrital de Mediacao em Saude (CAMEDIS). A experiencia da CAMEDIS e fruto do trabalho de articulacao institucional realizado no Comite, que possibilitou a criacao de um espaco de mediacao para resolucao extrajudicial de conflitos por meio de conciliacao e mediacao entre os cidadaos e os gestores do SUS.

    Com o tempo, a CAMEDIS ganhou autonomia em relacao ao proprio Comite, apesar de ainda ser supervisionada por ele. A CAMEDIS foi assumida na interface entre o Nucleo de Judicializacao, situado no ambito da Secretaria de Saude, e pela Defensoria Publica do Distrito Federal. Isto fez com que a CAMEDIS se tornasse um espaco de dialogo entre estas instituicoes e, em alguma medida, uma estrategia extrajudicial de efetivacao da saude.

    Como se trata de uma experiencia recente, os resultados de medio e longo prazo da CAMEDIS ainda nao foram alcancados, tais como a promocao de uma cultura de conciliacao e a valorizacao das estrategias extrajudiciais. Na experiencia de Brasilia, ainda se observa a cultura da litigiosidade e, como consequencia, a utilizacao do modelo adversarial do processo judicial na efetivacao do direito a saude. Porem, os resultados ja alcancados permitem compreender a CAMEDIS como uma estrategia extrajudicial promissora e que tem atingido alguns resultados, como sera visto.

  2. A pesquisa

    A pesquisa sobre a experiencia de Brasilia esteve inserida num estudo multicentrico...

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