Defensoria Pública e pacote anticrime: enunciados e primeiras impressões

A Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais mobilizou suas Câmaras de Estudos com atribuição criminal e em execução penal, bem como diversos defensores públicos para pensar institucionalmente as profundas reformas legislativas que inovaram o ordenamento jurídico com o advento da Lei 13.964/19 (pacote anticrime).

O estudo resultou, no último dia 17 de janeiro, na publicação de 29 enunciados institucionais que deverão servir de orientação doutrinária de atuação. O objetivo dos debates foi cumprir uma das missões constitucionais da Defensoria Pública: qualificação do debate jurídico democrático, a partir do prisma da instituição vocacionada a assegurar os direitos daqueles que não estão acostumados a tê-los.

As orientações lançadas estão agora no debate público, portanto sempre sujeitas a críticas e a aperfeiçoamentos, mas desejam servir de norte de atuação nesse momento vestibular de vigência da reforma.

Pela relevância da matéria e também certamente porque nossos Tribunais se manifestarão sobre as teses aprovadas pela instituição, o presente texto de apresentação pretende indicar breves linhas do que foi debatido. Três eixos gerais de abordagens foram eleitos para estudo: as alterações no Código Penal, no Código de Processo Penal e na Lei de Execução Penal.

Dentro desses grupos, subdivisões foram feitas na análise da disciplina de processo penal, certamente o grupo que carrega o maior número de inovações (juiz das garantias, arquivamento do inquérito, acordo de não persecução penal, medidas cautelares, apelação no tribunal do júri, entre outras).

No Código Penal, importantes observações foram realizadas. Destaco de saída o primeiro enunciado, que entendeu pela inconstitucionalidade da interpretação extraída do artigo 91-A e seu parágrafo segundo, no sentido de que caberia à defesa comprovar a licitude do patrimônio do acusado sob pena de perdimento dos bens do indivíduo.

O artigo, ao permitir que a acusação confisque bens que supostamente estariam em descompasso com o patrimônio, viola o artigo 5º, LVII, da CF, na medida em que ninguém pode ser privado dos seus bens sem o devido processo legal. Dispensa acrescentar que somente há devido processo legal constitucional de natureza criminal com a atribuição do ônus da prova à acusação. Desconsiderar o que está contido no enunciado poderá permitir verdadeira expropriação cruel dos poucos bens que famílias pobres conseguem reunir ao longo da vida nas favelas e aglomerados espalhados pelo país.

Sobre as alterações promovidas no crime de roubo, há dois importantes enunciados. Primeiro o quatro, que adota a interpretação de que para fins do artigo 157, parágrafo 2º, inciso VII, do CP somente as armas próprias (moldadas para ofender a integridade física) poderão ser consideradas armas brancas para fins de preenchimento da censura normativa.

A posição se justifica a uma porque o legislador quando quis abranger as armas impróprias usou o conceito genérico de armas, no extinto inciso I, do parágrafo 2º, do referido artigo. A duas porque o direito penal liberal, de um Estado Democrático de Direito, caracteriza-se pela limitação ao jus puniendi[1]. A três porque, como ensina Juarez Tavares[2], são inadmissíveis no Direito Penal todas as formas de analogia, salvo para beneficiar o indivíduo — isso vale para analogia legis e para analogia juris.

Além dele, também assume importância o enunciado três que anota ser imprescindível a apreensão e perícia da arma de fogo para comprovação de que ela se enquadra na censura acentuada do artigo 157, parágrafo 2º-B, do CP.

Não é possível, para qualificar o roubo neste dispositivo, valer-se do manejo da jurisprudência de que é prescindível a perícia na arma, visto que se trata de questões diferentes. Entendem os Tribunais que é dispensável a perícia para se afirmar que existia uma arma de fogo, mas o que defendemos é que o mesmo raciocínio não poderá ser aplicado para classificar a arma que existia. Ou seja, para afirmar que a arma de fogo é de uso restrito ou proibido, inafastável a perícia, já inclusive prevista no artigo 158 do CPP.

O que se constatou é que a prova sensorial ou mesmo a confissão são insuficientes para se classificar, por exemplo, um artefato como aquele que teve a numeração do sinal identificador alterado. A prova técnica aqui é a única que admite a comprovação de elemento normativo do tipo.

Tratando já do Código de Processo Penal, as mudanças foram sensíveis e estruturais. O enunciado oitavo é a cláusula geral que norteou o direcionamento para compreensão do juiz das garantias, na medida em que vislumbra no artigo 3º-A, do CPP, o cérebro de uma revolução infraconstitucional que espanca do sistema normativo brasileiro todos os dispositivos inquisitoriais ainda existentes. Isso ocorre porque a própria compreensão do ordenamento jurídico como sistema impõe a inexistência de normas incompatíveis, nas precisas lições de Bobbio[3].

Há muito explica Aury[4] que o processo penal acusatório caracteriza-se pela clara separação entre juiz e partes, o que deve acontecer ao longo de todo o processo para garantia da imparcialidade e efetivação do contraditório. É justamente a separação de funções, o afastamento do julgador dos elementos informativos e a retirada da gestão das...

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