Defesa da concorrência e proteção à propriedade intelectual: compatibilização entre a política concorrencial e as demais políticas públicas

AutorGilberto Bercovici
Páginas353-417
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DEFESA DA CONCORRÊNCIA E
PROTEÇÃO À PROPRIEDADE
INTELECTUAL: COMPATIBILIZAÇÃO
ENTRE A POLÍTICA CONCORRENCIAL
E AS DEMAIS POLÍTICAS PÚBLICAS
CONSULTA
A diretoria jurídica da empresa X, por intermédio de seu ilustre
advogado, honra-me com a presente consulta para elaboração de pare-
cer sobre questões envolvendo o processo administrativo instaurado
pelas autoridades de defesa da concorrência contra a empresa X e outras
montadoras por suposta prática de abuso do poder econômico, cujos
termos são transcritos abaixo:
A presente consulta tem por objeto processo administrativo ins-
taurado em razão de representação formulada pela Associação Y contra
a empresa X e outras, por suposto abuso de poder econômico.
Tais montadoras, amparadas pela Lei n. 9279/96 (Lei de Propriedade
Industrial), possuem registro de desenho industrial sobre determinadas auto-
peças de veículos por eles fabricadas – em especial, as chamadas crash parts1
1 Basicamente, as peças aparentes do veículo: calotas, faróis, grades de radiador, lanternas,
pára-choques, retrovisores, rodas, capôs, pára-lamas, portas, tampas traseiras.
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GILBERTO BERCOVICI
– o que lhes confere o direito de produzir e comercializar estas peças,
em caráter exclusivo, no prazo assinalado pela Lei (10 anos, prorrogáveis
por mais três períodos sucessivos de 5 anos cada).
Segundo a Associação Y, as montadoras teriam passado a adotar
diversas medidas judiciais e extrajudiciais (notadamente, notificações
extrajudiciais) contra seus associados, fabricantes independentes de au-
topeças, com o fim de impedir que esses agentes ofereçam no mercado
autopeças de reposição para os veículos das montadoras. Assim, acolhen-
do pedido das montadoras, o próprio Judiciário tem deferido a busca e
apreensão das peças produzidas pelas fabricantes independentes, bem
como ordenando que se abstenham de comercializar e de se utilizar das
marcas detidas pelas representadas.
Assim, e ainda segundo a Associação Y, a conduta das montado-
ras teria como objetivo eliminar os fabricantes independentes do mer-
cado de autopeças de reposição, para obter/manter seu monopólio sobre
o fornecimento das crash parts. Mais especificamente, a Associação Y
defende que o direito de propriedade intelectual deveria ser utilizado
apenas por uma montadora contra a outra, mas não seria oponível aos
fabricantes independentes – atuantes no chamado “mercado secundário”
de reposição – sob pena de violação à concorrência.
Importante destacar que os fabricantes independentes não pre-
tendem utilizar o desenho industrial das montadoras para criar pro-
dutos novos, incrementando-os ou aprimorando-os. O que eles lutam
para obter junto ao SBDC é o direito de poder copiar as peças das
montadoras.
A representação da Associação Y, inicialmente, motivou a instau-
ração de averiguação preliminar. No curso desse procedimento, tanto a
Secretaria de Direito Econômico (“SDE”) como a Procuradoria do
CADE opinaram no sentido de que o exercício dos direitos previstos
na LPI não pode ser tido como abusivo por si só. A intervenção anti-
truste somente se justificaria quando houvesse abuso dos procedimentos
de registro – o que não é o caso. Além disso, tendo sido acolhidas em
juízo as medidas judiciais das montadoras, também não seria caso de sham
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DEFESA DA CONCORRÊNCIA E PROTEÇÃO À PROPRIEDADE...
litigation. O CADE, aliás, na visão da SDE, seria até mesmo possivelmente
incompetente para intervir nessa matéria, uma vez que, ao contrário do que
ocorre com as patentes, a Lei de Defesa da Concorrência e a Lei de Pro-
priedade Industrial não previram a licença compulsória de desenhos in-
dustriais. Por fim, opinaram que o pleito da Associação Y deveria ser tra-
tado em âmbito legislativo, por meio de alteração legal, e não via processo
administrativo sancionatório perante o SBDC.2 A manifesta insegurança
jurídica (não apenas às montadoras, mas também para todas as demais
empresas que registram seu desenho industrial e confiam na sua proteção)
foi igualmente apontada pela D. Secretaria e i. ProCADE, verbis:
“Assim, querer restringir um direito previsto e cuidadosamente
disciplinado em lei com base em um conceito arbitrário e, pela
sua própria natureza, fugaz, além de ofender os mais comezinhos
princípios da hermenêutica jurídica, causa profunda insegurança
jurídica, pois os direitos de propriedade intelectual estariam sob
permanente indefinição de sua extensão, situação esta, frise-se,
insustentável e contrária ao fim do próprio direito, que é a paci-
ficação e estabilidade das relações sociais” (fls. x)
O Ministério Público, em sentido contrário, opinou pela instau-
ração de processo administrativo, por entender que, em razão do mo-
nopólio temporário conferido às montadoras sobre as autopeças, seria
factível que tais agentes exercessem abusos no mercado secundário de
peças de reposição. Argumentou, ainda, que não foi verificado se os
lucros obtidos pelas montadoras no mercado primário já não seriam
suficientes para compensar os investimentos em P&D das respectivas
empresas. Por fim, argumentou que, independentemente de não haver
previsão legal de licenciamento compulsório de desenho industrial, estes
não estariam imunes à tutela antitruste.
2 “Em conclusão, o pedido da Associação Y pelo não “reconhecimento” do exercício
do direito de propriedade das montadoras sobre suas autopeças no aftermarket, que em
última instância nada mais é do que o pedido de um licenciamento compulsório restrito
ao mercado de reposição, seria manifestamente ilegal pelos motivos já expostos e, mesmo
que fosse legal, nenhum dos órgãos do SBDC seria competente para afastar a proteção
conferida pelo INPI” (fls. x).

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