Definindo o republicanismo: abordagens, dificuldades e síntese

AutorLuís Alves Falcão
CargoProfessor do Departamento de Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal Fluminense, onde coordena o Laboratório de Estudos Republicanos (LER)
Páginas32-68
DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2021.e79152
3232 – 68
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Denindo o republicanismo:
abordagens, diculdades e síntese
Luís Falcão1
Resumo
O artigo apresenta uma síntese das diferentes e recentes denições do republicanismo. Para isso,
empreende-se uma avaliação crítica dos diversos modos como essas denições são empregadas
e, assim, debatem-se os anteparos do republicanismo em relação a tradições que se lhe opõe, a
embocaduras tautológicas e a extrapolações indevidas. Num segundo momento, argumenta-se
que a suposta exceção francesa deve ser lida de modo crítico e que seus pontos de contato com
o universo anglo-saxão não são incomuns. Na sequência, evidencia-se a estratégia de denição
por um ângulo histórico e são debatidas as implicações. Por m, o artigo argumenta que as deni-
ções excessivamente normativas e que dialogam explicitamente com a teoria política contempo-
rânea incorrem em contradições históricas. Propõe-se, então, uma síntese que congrega conceito
e contexto.
Palavras-chave: Republicanismo. Exceção francesa. Reconstrução histórica. Denição Normativa.
1 Introdução
Desde a retomada dos estudos sobre o republicanismo em meados do
século XX, o campo tem sido hegemonizado por pesquisas de orientação
anglo-saxã, tanto no que concerne a pesquisadores mais destacados quanto
à sensibilidade dos temas. Zera Fink, Caroline Robbins, Bernard Baylin,
Gordon Wood, J. G. A. Pocock e Quentin Skinner estão entre os autores
1 Professor do Departamento de Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Univer-
sidade Federal Fluminense, onde coordena o Laboratório de Estudos Republicanos (LER). Autor de Maquiavel,
Montesquieu e Madison: uma tradição republicana em duas perspectivas (Rio de Janeiro: Azougue, 2013);
Algernon Sidney: um pensador republicano do século XVII (Niterói: EdUFF, 2019); Algernon Sidney between
modern natural rights and Machiavellian republicanism (Newcastle, England, Cambridge Scholars Publishing,
2020) e Ensaios Republicanos (Curitiba: Appris, 2021).
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 20 - Nº 47 - Jan./Abr. de 2021
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centrais dessa reconstrução da história e dos fundamentos do pensamento
político moderno. Em regra, atêm-se ao renascimento italiano, às guerras
civis inglesas e seus desdobramentos e à revolução americana cujo argu-
mento central, não obstante as particularidades, destina-se a destacar o
papel do pensamento republicano no Ocidente moderno.
A notável centralidade do percurso “ítalo-atlântico”, para empregar
a expressão que comumente resume os termos de Pocock, omite ou nega
a importância continental e, sobretudo, francesa. De fato, autores como
Montesquieu, Mably e Rousseau, sem mencionar personagens de desta-
que da revolução e do século XIX, não ganham atenção nessas pesquisas.
O trabalho de Pocock, porém, não deve ser tomado como um resumo
do republican revival, porque ele se inscreve na lógica da ação política, da
participação cidadã, no contraste entre a virtù e a fortuna e o tema da cor-
rupção dos regimes políticos, distanciando-se, portanto, de interpretações
mais aproximativas com o liberalismo2. Ainda que esses temas tenham sido
tratados nas demais publicações, elas colocam em destaque, sobretudo com
Skinner e as pesquisas que se desenvolveram a partir das suas, o tema da
liberdade. Assim, já em ns do século XX, o republicanismo concatenou as
reconstituições históricas com uma embocadura efetivamente normativa
a partir do conceito de liberdade em torno do debate com o liberalismo
contemporâneo3.
Essa inexão do campo teve Philip Pettit como autor central, cuja
base teórica reside no conceito de liberdade como não dominação, que,
segundo ele, se diferiria tanto da versão da liberdade positiva quanto da
liberdade negativa, caudatárias de Isaiah Berlin ([1958] 1997). Chama a
atenção o fato de que, nas últimas décadas, os trabalhos de caráter mais
normativo não abandonaram a perspectiva histórica, vinculando o ideal
de liberdade como não dominação à tradição “ítalo-atlântica” (DAGGER,
1997; HONOHAN, 2002). O republicanismo seria, nesse sentido, uma
tradição teórica e um ideal normativo fundamentalmente anglófono, eiva-
do pelo renascimento italiano, sobretudo a partir de Maquiavel.
2 O próprio Pocock (2003, p. 553-556) tem uma visão crítica dessa aproximação.
3 Não trataremos especicamente do conceito de liberdade aqui, cf. Silva, 2015; Falcão, 2017.
Denindo o republicanismo: abordagens, diculdades e síntese | Luís Falcão
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Assim, o campo ganhou espaço nos debates contemporâneos mais
proeminentes no universo anglo-saxão, como os diferentes liberalismos e o
comunitarismo, reivindicando que o conceito republicano ou neorromano
de liberdade seria mais adequado e mais amplo para as sociedades contem-
porâneas porquanto resguarde o indivíduo e mantenha um vínculo partici-
pativo apenas instrumental, com uma concepção neutra de Estado do pon-
to de vista moral. Além disso, as recentes contribuições do republicanismo
visam a se diferenciar de liberais e comunitaristas pelo fato de, segundo
Pettit (1997, p. 206) e Skinner (1984, p. 234, 2002a, p. 242, 2002b,
p. 189), o republicanismo não atribuir qualquer valor intrínseco à natureza
humana, o que, via de regra, poderia ser estendido a toda a modernidade
republicana. A reunião dessas vantagens, argumentam, superaria os pontos
fortes de um liberalismo igualitário e da ética comunitarista (BELLAMY,
2008). Os pilares desse republicanismo, histórico e normativo, quase
sempre ignoram as contribuições francesas e, mesmo quando interpreta-
dos, negam que, por exemplo, Rousseau seja um pensador republicano
(PETTIT, 1997, p. 252-253, 2012, p. 12), seja porque a tradição francesa
é distante dos termos do momento maquiaveliano, seja porque ela concebe
a liberdade de um modo desvinculado da não dominação.
As reações a essa negação têm surgido em anos ainda mais recentes
e tornado o campo republicano mais rico, complexo e multifacetado.
Inúmeras pesquisas têm chamado a atenção para o silêncio do republica-
nismo diante da contribuição francesa ao campo e evidenciam o caráter
excepcional das teorias desenvolvidas nesse país ou interpretam-no com o
conceito de liberdade próximo da argumentação anglo-saxã (SPITZ, 1995).
De fato, as marcas do republicanismo francês se diferem daquelas do an-
glo-saxão, pois se inscrevem nos termos da revolução de 1789.
Diferentemente das guerras civis inglesas, a república na França não
surge como consequência da derrocada da monarquia, mas essa é sua cau-
sa, e, afastando-se da revolução americana, os ideais de representação local
e federalismo não encontraram eco nas correntes mais poderosas daquele
contexto. Poder-se-iam acrescentar à exceção francesa a questão social, a
unidade nacional, a educação universal e laica e o antimonarquismo como
princípios estruturantes. Esses termos são, de fato, estranhos à linguagem

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