Deixando os Pobres à Própria Sorte: A Tese da Responsabilidade Subsidiária do Estado na Promoção da Assistência Social e a Não Efetivação deste Direito

AutorLiane de Alexandre Wailla - José Ricardo Caetano Costa
Páginas180-192

Page 180

Liane de Alexandre Wailla1

José Ricardo Caetano Costa1

1. Introdução

Não se discute que a Constituição Federal de 1988, fruto da luta persistente de muitos movimentos sociais, constitucionalizou os direitos humanos e o reconhecimento dos direitos sociais, pavimentando um caminho em direção à redução dos níveis de pobreza, à universalização da cidadania, à fundação de uma nova sociedade, pautada pelos valores da solidariedade e da igualdade entre seus pares.

Também não há dúvidas que logramos apenas uma mera aparência daquilo que pensamos ter conquistado com a Constituição "Social" Federal de 1988, haja vista os encaminhamentos conferidos pelo Estado, mais preocupado em não transgredir as ordens e as prerrogativas económicas neoliberais, do que efetivamente construir uma rede organizada de proteção social aos cidadãos. Na seara assistencial, em que pese o significativo avanço de elevá-la ao patamar de direito social fundamental, compondo a tríade da seguridade social (Saúde, Assistência e Previdência), a promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social — LOAS (Lei n. 8.742/93) opós severas restrições à obtenção do único benefício de prestação continuada que regulamentou — o BPC. O que não nos autoriza, por óbvio, desmerecer os pequenos avanços sociais efetivados a partir de então e, menos ainda, aceitar retrocessos nesse longo e árduo caminho de realização, ainda que discreta, dos direitos sociais.

Este, pois, o propósito do presente trabalho: resistir ao retrocesso social inerente à teoria da subsidiariedade da atuação do Estado na proteção social, demonstrando que a superação dos níveis de miséria, pobreza e redução das desigualdades sociais passa pelo amplo compromisso do Estado em realizar os direitos sociais e não entregá-los aos ombros da família e da sociedade, como principal fonte de amparo social.

É preciso dizer, aos pobres viventes brasileiros que heroicamente vem suportando o sufocamento de um Estado de mínimas responsabilidades sociais, que a tese da subsidiariedade da participação estatal na promoção dos direitos sociais, os empurrará não para a margem, mas para fora da sociedade.

2. A assistência social no Brasil: os avanços que ainda retratam um estado mínimo
2. 1 Breve contextualização

Frente a necessidade de mitigar as desigualdades sociais ocasionadas na vigência do Estado Liberal, ocupado apenas com a proteção das garantias individuais de liberdade, e, mais adiante, o imperativo da reconstrução dos países no primeiro pós-guerra, surgia, nos idos do século XX, propostas voltadas a satisfazer as necessidades básicas do homem que, vítima do

Page 181

capitalismo/liberalismo de antes, não conseguia, dignamente, alcançá-las. Nesse momento, o Estado passa a protagonizar o processo de afirmação dos direitos sociais, substituindo os pressupostos liberais mais acentuados do individualismo e do seu próprio absenteísmo, pela qualificação do social e da intervenção do poder central no campo político, económico e social.

Reconhecia-se, então, uma terceira geração de direitos — os sociais que, pautados pela noção de igualdade, representavam "créditos" dos indivíduos em relação à coletividade, expressan-do-se pelo direito à educação, à saúde, ao trabalho, à assistência e à previdência (COUTO, 2010, p. 48). E, no contexto histórico, a maior expressão de efetivação dos direitos sociais, se deu com a consolidação, na primeira metade do século XX, em muitos países desenvolvidos, dos Estados de Bem-Estar Social (Welfare State), os quais ancorados nas seguintes propostas de proteção social:

Os projetos de Walfare State buscaram modificar as forças do mercado em três direções:

— garantindo aos indivíduos e às famílias uma renda mínima, independentemente do valor do trabalho ou de sua propriedade;

— restringindo o arco de insegurança, colocando os indivíduos e as famílias em condições de fazer frente a certas contingências sociais (por exemplo, a doença, a velhice e a desocupação), que, de outra forma, produziriam crises individuais e familiares;

— assegurando que a todos os cidadãos, sem distinção de status ou classe, seja oferecida uma gama de serviços sociais. (COUTO, 2014, p. 66)

Na era walfareana, segundo Aldaíza Sposati, citando Ramesh Mishra, o padrão de vida básico e nacional compunha-se,

(a) do pleno emprego e (b) de uma série de serviços universais para satisfazer as necessidades básicas. Este seria o padrão primordial de cidadania hoje abandonado pelos neoliberais ou neoconservadores, como denomina o autor [Ramesh Mishra]. [... ] Uma segunda linha, que sucede e complementa a primeira (a+b) na garantia de um padrão de vida mínimo implica (c) adotar padrões de proteção e de vida direcionados a grupos de baixos rendimentos e aos grupos mais vulneráveis. Esta linha supõe: salário mínimo, suplemento de rendimentos, criação de postos de trabalho, educação e formação profissional. Ela se caracteriza pela busca e construção da equidade. (SPOSATI, 1997, p. 14)

Trazendo essa historicidade para o campo da Assistência Social, tem-se que, num primeiro momento, ou seja, sob o diagrama do Estado Liberal de Direito, cada qual era responsável pela sua própria sorte, onde "a causa da pobreza deve ser buscada no próprio pobre, nas suas condições morais, na sua vontade: a pobreza é uma conduta. Como consequência, não há responsabilidade económica ou social pela miséria que justifique um programa de assistência pública cujo custo a sociedade deveria suportar" (SCHONS, 2008, p. 116).

Justamente em razão dessa percepção liberal, de que o pobre assim o é em razão de sua própria imprevidência, enten-dia-se que o direito à proteção social legalmente garantido era antinatural e nocivo à liberdade individual porque os induzia a submeterem-se passivamente à tutela estatal e enredar-se cada vez mais nas malhas da pobreza (PEREIRA, 2011, p. 106). O auxílio que lhe era oferecido para que escapasse da má sorte que o acompanhara, dava-se com a intenção de converter-lhe às leis da economia, recordar-lhe os deveres que tem para consigo mesmo e mostrar-lhe que tem o destino nas suas próprias mãos, delas dependendo o seu sucesso (ou fracasso). À marginalidade eram relegados os que não souberam tirar proveito da ajuda que caridosamente lhes fora concedida.

No entanto, como bem recorda Aldaíza Sposati, na modernidade capitalista "a questão da pobreza ganha nova visibilidade: já não pode mais ser justificada como fragilidade ou limites individuais, ou ainda, como fenómeno conjuntural. A pobreza se torna visível como fenómeno estrutural decorrente de um modo de produção que engendra a exclusão, as desigualdades sociais e a injustiça social" (SPOSATI, 1995, p. 113), dando guarida, assim, à edificação do Estado Social de Direito.

2. 2 O estado social de direito no Brasil: o espelho de uma contradição

No Brasil, o Estado-Providência, à semelhança daquele experimentado na Europa na primeira metade do século XX, consubstanciado, como visto, numa maior intervenção estatal nas relações sociais e económica, não apenas como mero regulador, mas protagonista de políticas públicas voltadas a assegurar direitos sociais básicos, materializou-se, de forma embrionária, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, marcadamente de cunho social e erguida sob o princípio da dignidade humana, fio condutor dos demais direitos e deveres nela consignados, ou não.

O art. 6 da Carta da República, pioneiramente consagra a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados como sendo o rol de direitos sociais a que fazem jus todos os brasileiros.

Na seara assistencial, o reconhecimento da existência de desigualdades sociais no Brasil e da responsabilidade do Estado em solucioná-las, como bem demonstra o art. 194 da CF/1988 ao credenciar o sistema de seguridade social como sendo "um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinado a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social"; deu fólego novo aos desamparados.

Na sequência, o art. 203 traz o que talvez tenha sido a maior inovação em termos de proteção social: a afirmação da

Page 182

assistência social como um direito não contributivo, mas de todos que dela necessitarem, devendo o Estado ocupar-se dos interesses e necessidades sociais dos segmentos empobrecidos da sociedade, cabendo-lhe, ainda, apresentar garantias capazes de prevenir exclusões e proteger os cidadãos dos riscos.

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

I — a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;

II — o amparo às crianças e adolescentes carentes;

III — a promoção da integração ao mercado de trabalho;

IV — a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

V — a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

Desse modo, à luz da Constituição da República, os destinatários das políticas assistenciais seriam todos os cidadãos que se virem diante de alguma situação que lhes impeça de, por seus...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT