Estado, democracia e globalização

AutorLuiz Alberto G. S. Rocha
Páginas1-19

Luiz Alberto G. S. Rocha. O autor é Doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo/2003 e Professor Titular de Direito Constitucional da graduação e Mestrado em Direito da Universidade da Amazônia – Unama e da graduação da Faculdade do Pará - FAP. Assessor de Desembargador, TJE/PA.

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1 Introdução

O artigo pretende ser um resumo de idéias mais alongadas que escrevi em livro de mesmo nome publicado recentemente pela Editora Forense e que transporta àquelas páginas uma indagação visceral que tem me acompanhado por esses anos de pesquisa jurídica: como estabelecer um parâmetro aceitável do conceito de soberania dentro do contexto de crescente internacionalização das relações jurídicas?

Explica-se a pergunta foco daquele trabalho, pelo protagonismo que o conceito de soberania desempenhou, e ainda desempenha, na explicação das ciências jurídicas e políticas acerca da formação do Estado Moderno.

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Bem sei que os elementos formadores do Estado Moderno não ressoam mais contemporaneamente, diante da miríade de mudanças sociais que vivenciam os tempos atuais. São modificações trazidas, ou pelo menos alavancadas, pelo fenômeno da globalização e que resultaram em um arranjo estatal completamente diferente do que se tinha anteriormente.

Se a seara doutrinal discute o uso da expressão Estado Pós-Moderno, Segunda Modernidade ou, simplesmente, mais uma crise do Estado Moderno; a verdade inerente a todas essas concepções é que as mudanças se apresentam a olhos vistos e já a explicação da soberania como instituto absoluto e invulnerável não corresponde mais como justificativa do Estado.

Na tentativa de responder ao questionamento que havia me proposto naveguei entre os conceitos tradicionais de soberania desde Jean Bodin até uma visão estritamente moderna de Georges Burdeau, e, posteriormente, por paradigmas contemporâneos de Zygmunt Bauman e Milton Santos.

Para avaliar com maior precisão a revolução copernicana no conceito de soberania, utilizei a metáfora da combustão de materiais para designar o fenômeno da globalização como o catalisador dessa metamorfose conceitual. E, ao final, pincelei um novo modelo de Estado Soberano sobrevalorizando o elemento democrático, agora lançado ao cenário internacional que tomei a liberdade de chamar democracia estendida.

2 O marco da soberania na construção do estado moderno

Dos diversos recursos conceituais que se possam abraçar sobre a soberania preferi optar por uma descrição mais fugaz de autores principais que consigam apresentar de forma direta e resumida o que se escreveu sobre soberania desde o século XVI até meados do XX. Isto faz com que se incorpore à pesquisa leituras de soberania de Jean Bodin, de Hans Kelsen e de Georges Burdeau.

É lógico que muitos outros poderiam se apresentar para trazer suas concepções de soberania, e o pesquisador rigoroso sempre terá um novo autor a sugerir que possa apresentar uma nuance alternativa para o movimento conceitual que se desenvolveu ao longo dos séculos. Porém, como o objetivo principal não éPage 3 histórico-conceitual, mas histórico-prospectivo no sentido de fornecer elementos para demonstrar a mudança de perspectiva do conceito de soberania. Acredito que os referidos autores possam nos dar fundamento suficiente para tal.

No que concerne à Bodin, a referência histórica retoma a estrutura plural do poder Medieval que não encontrava um assento sistemático de organização. Posto que a estrutura de vassalagem não representava uma hierarquia rígida de poder não se encontrando uma relação interestatal estável tanto mais difícil pensar na formação de um Estado Nacional.

Neste contexto, Bodin com sua “República” apresenta o conceito moderno de soberania, pois ele mostra a urgência de sua geração em conferir ao príncipe a unidade de poder que pudesse unificar o Estado e estabilizar as relações sociais, principalmente, do ponto de vista bélico.

Sendo assim, conferir a um único soberano a unidade de poder do Estado fortalece, por reflexo, a estrutural social, pois organiza o poder social dentro de uma sistemática inquebrantável da força do Estado reunida no príncipe unificador.

Se os homens podem ser persuadidos a aceitar a vontade preeminente do órgão soberano, a oposição ficará privada de suas principais pretensões, e Henrique IV, por exemplo, pôde restaurar para a França a prosperidade que os conflitos religiosos tinham posto em perigo.1

Assim, em um Estado centralizado, unificado e laico, pode-se dotar o príncipe do poder soberano, de estar acima de qualquer outro fator de poder estatal, capaz, pelo menos dentro daquele contexto histórico, de unificar a sociedade em torno de um único projeto de Estado: o soberano.

Nesse cotejo é que surgem as características principais do conceito de soberania (e que mantiveram firmes durante muito tempo): a perpetuidade e o absolutismo. O soberano é perpétuo porque sem essa incondicionalidade temporal, o soberano deixaria de sê-lo porque se em algum momento ele pudesse perder o poder, então, de fato, a soberania do poder nunca lhe pertenceu originalmente, já que um elemento exógeno teria a capacidade de limitar sua ação no tempo.

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Absoluto porque não se pode conceber um poder soberano que encontre compartilhamento de poder com qualquer que seja o elemento social. O príncipe só se submete às leis divinas e naturais, não reconhece, portanto, qualquer outro como superior.

Esses conceitos a par de se mostrarem desastrosos em nosso contexto contemporâneo foram vitais para a unificação dos Estados Nacionais na figura centralizadora, mas politicamente necessária do soberano, trazendo para as ciências sociais mais um elemento de estudo: a soberania.

Dando um salto cronológico para encontrar Hans Kelsen no raiar do século XX, e a concepção metodológica da pureza de análise científica voltada ao positivismo jurídico que se afasta do direito natural, aproximando-se da tensão entre o ser e o dever ser para compreender perfeitamente a relação possível entre a norma válida e os acontecimentos do mundo real. E que tamanha influência causou nos estudos jurídicos de todo o século XX ao redor do mundo.

Essa realidade a-ética da norma fundamental tanto defendida pelo autor austríaco é que dá o caráter dinâmico ao Direito, já que a norma jurídica já não é valorada por seu conteúdo, mas porque, e somente por isso, se valida por outra norma.

A validade desta não pode ser negada pelo fato de seu conteúdo contrariar o de uma outra norma que não pertença à ordem jurídica cuja norma fundamental é o fundamento de validade da norma em questão. A norma fundamental de uma ordem jurídica não é uma norma material.2

O que explica para Kelsen, e talvez com certa tristeza ao leitor, que sua filosofia não consegue dar existência conceitual à soberania, pois a introdução de um conceito político dentro da ordem jurídica é a coroação de teorias subjetivas jusnaturalistas do Estado, porque não explica em si, e dentro da rigidez lógica do autor, como o Estado pretende ser soberano já que a soberania elimina a possibilidade de validação superior. E encaminha a uma explicação fora do Direito, a razão de ser da soberania estatal.

É uma ilusão acreditar que normas legais podem ser derivadas do conceito como a soberania ou qualquer outro conceito legal. Normas legais são válidas so-Page 5mente se elas forem criadas por legislação, costume, ou tratado; e as normas legais componentes da chamada igualdade dos Estados são válidas não porque os Estado são soberanos, mas porque essas normas são normas do direito internacional positivo .3

Não surpreende, por conseguinte, que a questão da soberania tenha sido renegada pelo Direito por longo período, já que ela não se enquadrava na explicação lógico purista do positivismo jurídico.

Não quer dizer com isso que a soberania tenha deixado de existir enquanto elemento conceitual do Estado Moderno, mas os reflexos dessa concepção estreita da realidade estatal propiciaram uma negação reducionista da complexidade explicativa do cenário estatal, principalmente numa realidade histórica fortemente conflituosa quanto foi a geração kelseniana.

Por isso que a retomada conceitual de Georges Burdeau representa uma leitura político-democrática do conceito de soberania que ajudou a retomar as bases estatais da sociedade pós-guerras e que de certa maneira auxiliou na reconstrução do Estado Moderno em bases de social-democracia.

Isto porque Burdeau lê no poder social uma força a serviço da idéia do bem-comum e a representação ordenada da Idéia de Direito. Ou seja, a sociedade se organiza na crença (liberal?) da busca coletiva pelo bem-comum e que as regras jurídicas – as leis – sejam representações estatais do caminho a ser seguido pelos indivíduos, reunidas na Constituição do Estado.

E sendo assim, o poder precisa se legitimar no consentimento dos indivíduos que viabilizam a entrega desse poder aos governantes. Ou, por leitura inversa, a função da Idéia de Direito, em Burdeau, é fundar o princípio da legitimação sobre a qual se forma o Estado e possibilitar a continuidade do mesmo.

Isto faz-nos concluir que a única fonte viabilizadora dessa legitimação é a força do poder constituinte que concentra em um texto positivo os valores sociais e estrutura a forma de exercício legítimo de poder na sociedade.

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Na...

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