Democracia e Legitimidade: três teses sobre o papel da comunicação na justificação política

AutorRenato Francisquini
CargoProfessor Adjunto do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Páginas268-300
DOI: https://doi.org/10.5007/175-7984.2020v19n45p268
268268 – 300
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Democracia e Legitimidade: três teses
sobre o papel da comunicação na
justicação política
Renato Francisquini1
Resumo
Este trabalho pretende contribuir para uma compreensão abrangente sobre o papel atribuído
à comunicação, pela teoria democrática contemporânea, na justicação da autoridade política.
Para realizar esse objetivo, as diversas perspectivas teóricas serão agrupadas em três rubricas – as
teses da contribuição, da exclusividade e da necessidade – segundo o lugar conferido por elas à
deliberação pública na garantia da legitimidade das decisões coletivas. A partir de uma revisão
da literatura pertinente, evidencia-se uma distinção no que se refere às condições sucientes e/
ou necessárias para que as decisões políticas sejam consideradas por todos os afetados como
moralmente aceitáveis e politicamente convenientes. Resta claro, destarte, uma discordância de
fundo nessas perspectivas no que tange ao grau de importância assinalado à comunicação entre
iguais para assegurar a justicação da autoridade política.
Palavras-chave: Teoria democrática. Legitimidade. Comunicação.
1 Introdução
A democracia é, por sua natureza, um sistema em que se veda a impo-
sição de decisões vinculantes aos cidadãos (DAHL, 2006). Uma das prin-
cipais preocupações da teoria democrática, nesse sentido, é a de identicar
as razões que poderiam ser mobilizadas para assegurar o consentimento,
o qual se sustenta na convicção dos cidadãos que estão submetidos às re-
gras e decisões de que estas são moralmente defensáveis e politicamente
1 Professor Adjunto do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
E-mail: renato.francisquini@ufba.br
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 19 - Nº 45 - Mai./Ago. de 2020
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convenientes. Descarta-se, como razão plausível, entre outras coisas, o re-
curso à violência ou à ameaça de coerção, que desconstrói a capacidade
do poder de reivindicar obediência. A legitimidade de um arranjo político
e de suas decisões – que envolvem eventualmente o emprego da coerção
física – depende de que sejam justicáveis aos cidadãos sobre os quais rei-
vindicam autoridade.
A teoria democrática, todavia, compreende de maneiras distintas as
razões que levam os que se submetem à estrutura institucional a aceitar as
normas propaladas e a sua execução pelo aparato político. Essa questão,
veja-se, não se refere à gênese histórica da estrutura institucional vigente,
mas, antes, à justicação das restrições impostas por tal estrutura, isto é, às
formas de autoridade que nela se constituem. Em regimes democráticos, a
legitimidade está associada à possibilidade de se justicar as decisões cole-
tivas e o emprego do aparato coercitivo do Estado. Justicação, esta, que se
sustenta em certas razões que são capazes de reivindicar o consentimento
dos cidadãos.
Em oposição à tese, de viés hobbesiano, que considera que a autori-
dade legítima consiste em uma abdicação justicada da faculdade do jul-
gamento em favor do soberano representante, a tradição democrática sus-
tenta que os cidadãos mantêm a prerrogativa do julgamento com respeito
às decisões políticas e à sua implementação. A capacidade de julgamento,
nessa tradição, identica-se com a ideia de soberania popular, que remete a
certos elementos práticos, como os mecanismos de decisão majoritários, a
garantia dos direitos individuais associados à participação no autogoverno
e os procedimentos deliberativos presentes nas democracias contemporâ-
neas (WARREN, 1996, p. 46).
A ideia de legitimidade guarda uma relação direta com a informação
disponível à fundamentação de nossas decisões e com a possibilidade de
livre comunicação entre os cidadãos. No trabalho que ora se introduz, dis-
cuto diferentes maneiras de se olhar para o papel da comunicação na justi-
cação das decisões políticas e da autoridade democrática. Vou me orien-
tar, neste trabalho, por uma ideia de comunicação entendida lato sensu
Democracia e Legitimidade: três teses sobre o papel da comunicação na justicação política | Renato Francisquini
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como discussão pública2. Compreendo a comunicação pública como um
intercâmbio multifacetado e diversicado de discursos, argumentos, razões
e opiniões, uma troca que ocorre nas inúmeras esferas públicas e entre estas
e os fóruns formais do Estado. A relação entre comunicação e democracia
não deve ser entendida apenas como o engajamento simultâneo, de um
número qualquer de pessoas, sob uma estrutura institucional especíca.
Como sugere Chambers, “[...] estudar a deliberação como um fenômeno
de massas signica falar sobre fenômenos, isto é, signica generalizar sobre
formas múltiplas, plurais e sobrepostas de discurso político dispostas no
tempo e no espaço” (2012, p. 54)3.
Na democracia, a comunicação é uma atividade essencialmente práti-
ca. Isso signica que a comunicação pública se orienta pela busca de res-
postas para questões acerca “do que deve ser feito”, sobre “quem somos”,
“como nos relacionamos com o outro” e “que tipo de sociedade queremos”.
As práticas comunicativas envolvem, assim, o oferecimento, a recepção e
a avaliação de razões a favor ou contra um curso de ação, os fundamentos
das relações entre as pessoas e a nossa própria compreensão de nós mesmos
e do mundo (CHAMBERS, 2012) 4.
Chambers (2012, p. 56-59) distingue “deliberação” de “discussão”,
sugerindo que a primeira recorre necessariamente a razões, enquanto a úl-
tima pode se restringir a uma reunião de opiniões. Contudo, se a delibe-
ração for restrita ao debate sobre princípios de justiça, apenas muito rara-
mente deliberamos nas sociedades reais. A comunicação pública em uma
ordem política democrática não é apenas uma forma de deliberação entre
2 Como evidenciam Elstub, Ercan e Mendonça (2016) essa ampliação no conceito de comunicação prevalece
desde ao menos a segunda geração dos estudos deliberativos, que se origina a partir de críticas ao caráter
exclusivista de “deliberação racional” suposto nas primeiras elaborações teóricas na perspectiva deliberativista.
No artigo de Elstub, Ercan e Mendonça (2016), há uma exposição exaustiva sobre a “estrutura geracional” da
vertente deliberativa.
3 No original: studying deliberation as a mass phenomenon means talking about phenomena, that is, generali-
zing about multiple, plural, and overlapping forms of political talk over time and place.
4 Gostaria, em primeiro lugar, de evitar a associação exclusiva entre deliberação pública e uma forma de argumen-
tação crítica, que traz consigo, via de regra, uma concepção impregnada de viés cultural, associada a contextos
institucionais particulares, tais como o debate cientíco, os parlamentos modernos, os tribunais e os salões e
cafés que se desenvolveram nas sociedades burguesas europeias do século XVIII. Esses fóruns, como sabemos,
pressupõem uma forma de expressão determinada de antemão, tanto institucional quanto normativamente.

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