Democracia, Participação e Cidadania

AutorOcimar Barros de Oliveira
Ocupação do AutorAdvogado, professor de Direito
Páginas33-105

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A participação do cidadão no processo administrativo tem evoluído à medida que a sociedade conscientiza-se da importância da defesa de seus interesses, bem como da participação nos assuntos e negócios que retratam os interesses perseguidos pelo Estado, mesmo porque a cidadania preexiste ao Estado. A cidadania não existe em função do Estado, mas antes este é que existe em função daquela. A concepção de que o homem é um animal social remonta à Grécia antiga nas ideologias difundidas por Aristóteles:

A cidade é uma criação natural, e que o homem é por natureza uma animal social, e que é por natureza e não por mero acidente (...) Agora é evidente que o homem, muito mais que a abelha ou outro animal gregário, é um animal social. Como costumamos dizer, a natureza não faz nada sem um propósito, e o homem é o único entre os animais que tem o dom da fala. (...) A característica específica do homem em comparação com os outros animais é que somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais, e é a comunidade de seres com tal sentimento que constitui a família e a cidade.1Partindo da concepção de Aristóteles de que o homem é um ser social por excelência, pode-se entender toda a evolução social do homem, desde quando, inicialmente, vivendo em cavernas e se alimentando da caça e de vegetais coletados, vagava nômade pela extensão do território em que vivia.

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Remetendo-se o pensamento para esse cenário de aparente liber-dade, poder-se-ia cometer o erro de esquecer as ameaças naturais a que o homem de então se expunha: animais selvagens, intempéries da natureza, além daquelas impostas pelo próprio homem na divisão da caça e disputas de territórios.

O próprio desenvolvimento fisiológico do homem determina que o mesmo seja social por excelência, pois tem uma longa relação com os pais até se tornar independente, ou seja, adulto. Tal fato, somado aos demais supra mencionados, a saber, necessidade de defesa das ameaças do meio ambiente, determinou a necessidade de o homem se unir a outros no intuito de otimizar a defesa, inclusive uns dos outros.

Inicialmente tal defesa era determinada pela força, num período conhecido como da autodefesa, em que os mais fortes, perspicazes e ágeis se impunham perante os demais.

Diante de tal realidade o homem primitivo sentiu a necessidade de se reunir em grupos maiores, para potencializar as defesas, e esses grupos, semelhante ao que acontece com outros grupos de animais, eram liderados pelos mais fortes e de maior destreza, os quais tinham em suas mãos o poder de decidir toda sorte de fatos ocorridos no seio daquela sociedade.

Contudo, diferentemente dos demais animais, que são dirigidos pelos estímulos do meio em que estão inseridos, o homem, com seu cérebro privilegiado e sua natural curiosidade pelos fenômenos naturais e sociais, fez grandes descobertas que o levaram a evoluir até os dias de hoje: domínio da linguagem, do fogo, a agricultura que o fixou à terra, dando início à concepção de propriedade, e, a mais importante delas, a escrita.

A escrita foi o grande divisor de águas na história humana, pois permitiu que toda ciência e toda cultura acumulada pela raça humana ao longo dos milênios fosse transmitida às futuras gerações.

Uma das grandes importâncias da escrita foi permitir a codificação dos direitos e deveres dos membros das sociedades que a dominavam;

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por isso, em nossos dias temos relatos de códigos primitivos que não caíram no esquecimento devido a esse poderoso instrumento de registro e disseminação de culturas anteriores.

Conforme relata o Prof. Márcio Alexandre:

Após o surgimento do direito escrito, como expressão das concepções históricas dominantes do Estado Antigo, destaca-se o Código de Hamurabi, o Pentateuco de Moisés, o Código de Manu, as Legislações Gregas e Romanas.2

O Código de Hamurabi, por exemplo, legitimava a autodefesa, permitindo, logo em seu primeiro artigo, que aquele que imputasse a alguém alguma acusação (sortilégio) e não provasse deveria ser morto.

Já a Lei Mosaica, consagrada no Pentateuco, que são os cinco primeiros livros da Bíblia, propaga uma justiça ahistórica, ou seja, inspirada por Deus. Importante verificar o fato histórico de Moisés descendo da montanha com as tábuas dos Dez Mandamentos em mãos, como autêntico mensageiro de Deus. Verifica-se na Lei Mosaica o emprego da autodefesa e de mecanismos rudes de execução das penas, como o apedrejamento.

Nessa época, mesmo que houvesse um desenvolvimento embrionário do Direito, principalmente em decorrência da escrita, verificava-se a imposição pela força e pela posição social, já que a sociedade era estratificada em reis, senhores, família dos senhores, soldados, sacer-dotes, servos, escravos.

Menciona, ainda, o Prof. Márcio Alexandre:

A propósito, necessário ressaltar que no último livro de Moisés, denominado de Deuteronômio3, já se observa o estabelecimento de algumas normas de direito social, com relação à justiça, à educação e cultura, à assistência social e ao trabalho.4

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A evolução da sociedade passa pelas famílias, tribos e acaba culminando com o advento das cidades, a partir do momento em que tribos se uniram, ainda que respeitando divergências, principalmente de cultos religiosos, que era um obstáculo quase intransponível para a junção de duas ou mais tribos.

Até os dias atuais se podem vislumbrar guerras por discriminação e intolerância religiosa.

Segundo Márcio Alexandre da Silva Pinto: “Apenas na Antigüidade Clássica, com o surgimento das Cidades-estado, se deu origem e conteúdo ao termo “cidadania”, observa-se uma concepção de proteção legal do cidadão, malgrado restrita a uma minoria e aos direitos políticos”5.

Na antiguidade clássica, destacam-se cidades como Atenas e Esparta, onde o desenvolvimento da filosofia permitiu grandes avanços nos direitos de cidadania, apesar de ser uma cidadania restrita a deter-minados grupos: homens maiores de idade e detentores de propriedades, excluindo-se os menores, mulheres, escravos e metecos6.

Dessa forma, nas Constituições existentes na antiguidade clássica, grande parte da população era excluída dos direitos, principalmente dos direitos políticos do cidadão.

Na Roma antiga a sociedade evoluiu em torno do “pater familias”, que tinha um poder praticamente absoluto de decidir sobre todos os assuntos de interesse da família, que não se resumia ao vínculo sanguíneo, sendo que todos aqueles que eram aceitos no ambiente familiar tinham que se reportar ao mesmo, filhos naturais e adotivos, servos, escravos.

O desenvolvimento das famílias em “gens”, que eram dominadas pelos filhos dos pater familias, ou seja, os “filli familias”. A proliferação das “gens”, que reconheciam um líder comum, o “pater” ou “magister

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gentis”, originaram as “urbs”, que posteriormente foram transformadas em cidades-Estado, as “civitas”. Destaque para aquela fundada por Rômulo, a qual deu origem à Cidade-estado de Roma.

Somente os patrícios tinham direito como verdadeiros cidadãos:

Roma, a primeira das cidades itálicas, fundada por Rômulo no platô do Monte Palatino, era a cidade dos patrícios e dos clientes. Dela não participava, nem mesmo se aproximava a plebe, cujo alojamento se fez no Asilo que se situava no outro lado, na encosta do Monte Capitoloino.7Com o surgimento das Cidades-Estado surgiu então o termo cidadania, que se referia àquele que era integrado à realidade de tais cidades, nelas possuindo alguns direitos e deveres. Contudo, cidadania era privilégio de apenas alguns, que eram homens livres, adultos e que tivessem posses. Em decorrência de tais características o cidadão poderia gozar de privilégios civis e sociais.

Dando um salto à Idade Média, pode-se verificar outro marco importante na defesa da cidadania, que foi a conquista de garantias da denominada Carta Magna, imposta pelos barões ao Rei João Sem Terra, no ano de 1215. A Carta Magna tinha a visível finalidade de proteger os interesses do baronato frente aos abusos praticados pelo Rei João Sem Terra, consagrando um dos instrumentos em que se vislumbra a defesa coletiva dos direitos de um grupo de cidadãos. Atribui-se à Magna Carta a origem do devido processo legal, no sentido de nenhum cidadão ser privado de seus bens ou liberdade sem o devido processo.

Outros acontecimentos de suma importância para o desenvolvimento da defesa da cidadania ocorreram na segunda metade do século XVIII, com o advento das revoluções burguesas, principalmente a Revolução Americana de 1776 e a Francesa, de 1789, tendo esta culminado com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, documento muito importante para as conquistas dos direitos humanos da cidadania ao longo desses mais de dois séculos.

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No período pós-revoluções burguesas, com a implantação do Estado de Direito, verificou-se que as...

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