Democracia e partidos políticos

AutorGustavo Vicente Sander
Páginas21-33

Gustavo Vicente Sander. Professor de Teoria do Estado e da Constituição e de Direito Econômico na Faculdade de Direito do UNIRITTER Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (gsander.veritas@yahoo.com.br).

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1 Introdução

O funcionamento das democracias contemporâneas depende de uma série de mecanismos que dão forma ao ideal substantivo de participação dos cidadãos na vida política de seus Estados. Dentre eles, um dos que se coloca em evidência é o partido político, mecanismo fundamental para o agrupamento das opiniões dispersas na comunidade, sem o que a democracia de massas seria provavelmente impossível de organizar.

Dessa feita, o objeto material do presente trabalho, o espaço da realidade objetiva que se pretende estudar, recai sobre os partidos políticos e suas relações com os regimes democráticos, aos quais servem como importante instrumento. Toda realidade, porém, apresenta-se de maneira complexa, como um prisma que, embora uno, reflete em cada face um aspecto diverso desta unidade.

Assim, crendo ser conveniente uma abordagem multifacetada de nosso objeto, dividimos este trabalho em três partes: na primeira analisamos os fatores cultu-Page 22rais, sociológicos e políticos que levaram à formação das democracias de massa; na segunda, as soluções propostas pela política e pelo direito ao problema do ingresso das massas na arena política, com destaque para o papel atribuído aos partidos políticos; na terceira, fechamos o trabalho com ênfase em aspectos jurídicos, expondo o tratamento que a Lei Fundamental de Bonn e a Lei Orgânica dos Partidos Políticos espanhola reservam aos partidos políticos enquanto instrumentos necessários à concretização dos ideais democráticos.

2 Democracia de massas e o surgimento dos partidos políticos
2. 1 Da democracia antiga ao Estado Liberal

Os regimes democráticos de governo foram vistos com muita reserva ou mesmo franca hostilidade durante quase toda a história política ocidental por causa da degeneração demagógica que os assolou durante a antiguidade clássica. Em virtude deste problema, observado já na democracia ateniense, a democracia passou a ser vista, desde o nascedouro, como o regime onde imperam as paixões descontroladas, atiçadas e manipuladas por demagogos de má-fé em busca de objetivos pessoais e honras estéreis, em detrimento da boa governança da comunidade1.

Esta visão negativa da democracia começou a desfazer-se a partir do século XVIII com a ascensão das idéias políticas liberais, as quais buscaram uma ruptura com o modelo político do Estado Absolutista. Credita-se às obras de Rousseau e Montesquieu a influência duradoura do novo modelo – o governo representativo2, ou republicano como se preferia chamá-lo à época, no espírito dos regimes políticos que desde então são apontados como exemplares.

Com efeito, Rousseau, se de um lado aceitava o ideário corrente em sua época de que a democracia, i.e., a participação de todo o povo na deliberação dosPage 23 assuntos atinentes ao bem de todos, era um regime inexeqüível, a não ser, em sua opinião, nos Estados muito pequenos3, de outro fixou o ideal segundo o qual só é legítimo o governo no qual todos participam das decisões4. O Barão de La Bréde, por sua vez, fixou o conceito daquilo que Ferreira Filho aponta5 como o cerne da democracia moderna: a representação política. Transcrevam-se as célebres palavras de Montesquieu:

Comme, dan un Etat libre, tout homme que est cense avoir une âme libre doit être gouverné par lui-même, il faudrait que le people en corps eût la puissance légilative : mais, comme cela est impossible dans les grandes Etats, et est sujet à beoucup d’inconvénients dans les petits, il faut que le peuple fasse, par ses représentants, tout ce qu’il ne peut faire par lui-même. 6

O modelo descrito por Montesquieu não foi por ele inventado, pois correspondia a pratica institucional inglesa, tanto que o autor o aborda no capítulo do Espírito das Leis em que descreve a Constituição da Inglaterra. Foi este o modelo predominante no ideário das Revoluções Liberais, as quais, antes de pretender a instauração de regimes democráticos à moda da antiguidade, tinham como programa a instauração de regimes republicanos, querendo com isso significar o Governo “of the People, but not directly by the People”, na sucinta formulação de Finner7. Com isto procuravam diferencia-se dos regimes democráticos, ainda vistos com ojeriza.

Em uma primeira fase, o ideal de governo representativo consolidou-se no que conhecemos como Estado liberal clássico, institucionalmente modelado no sistema inglês conforme descrito por Montesquieu, adotando a triparti-Page 24ção de poderes, a representação política e eleições caracterizadas pelo sufrágio restrito. A representação é aqui entendida no sentido de que o representante atua em nome de toda nação, não estando, portanto, vinculado ao grupo que o elegeu. Dessa feita, tem-se uma visão hostil aos partidos políticos, vistos como órgãos de facção na defesa de interesses particularizados. Admitir sua presença no cenário político equivaleria a macular o ideal rousseauniano de que a lei deve expressar a vontade geral8.

2. 2 O Estado Social e a ascensão dos partidos políticos

O Estado Liberal Clássico surgido no último quarto do século XVIII não resistiu aos eventos da primeira metade do século XIX. De fato, a acelerada industrialização da Europa ocidental causou profundas alterações sócio-econômicas que se refletiram com força na arena política. A ascensão dos partidos como atores indispensáveis ao processo político democrático foi um fenômeno simultâneo à transição do Estado liberal clássico para o Estado social.

Com efeito, dentre as causas políticas do surgimento do Estado social estão a universalização do sufrágio e a organização política das massas em partidos de cunho ideológico, que viabilizaram sua participação no processo eleitoral9, propiciando a chegada ao poder de reformistas dispostos a atender aos clamores por uma maior intervenção no domínio social e econômico, em prol do bem-estar geral de todos, com ênfase nos menos validos10. A ânsia de Rousseau por um governo no qual todos participem das decisões foi, assim, se concretizando pela gradual ampliação do sufrágio, ainda que, ironicamente, dentro de uma estrutura representativa cujo funcionamento não dispensa a intermediação dos partidos.

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Note-se que era possível identificar a existência de partidos políticos rudimentares ainda na fase de predomínio do Estado liberal clássico11, os quais, no entanto, se diferenciam estruturalmente dos partidos que vieram a predominar na fase seguinte. Segundo Souza Junior, os partidos do período liberal clássico são de quadros, i.e., buscam agregar relativamente poucas personalidades notáveis, são fracamente estruturados e agrupam-se ao redor dos mesmos valores básicos, pois não procuram transformar a organização social, econômica e política vigente. Os partidos atuantes no Estado social, por sua vez, apresentam características diametralmente opostas: são partidos de massa, fortemente estruturados e hierarquizados e adotam programas reformistas da ordem vigente12.

3 A definição do papel dos partidos políticos nos regimes democráticos

Mais do que diferenças organizacionais internas, importa destacar a diferença em termos da importância dos partidos para o funcionamento do sistema político como um todo. Se o Estado liberal clássico podia dispensar os partidos, o Estado social não mais. De fato, a heterogeneidade dos interesses em conflito na arena política, que aumentava à medida que se expandia o sufrágio, obrigou que se concebessem mecanismos capazes de dar-lhes vazão de maneira...

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