Democracy, Freedom of Expression and Black Blocs/ Democracia, Liberdade de expressao e Black Blocs.

AutorBorges, Rosa Maria Zaia
  1. Roteiro de cena ou "notas introdutorias"

    "Vem pra rua". "Nao e por 20 centavos". Esses foram alguns dos slogans mais comuns entoados por centenas de milhares de pessoas que foram as ruas, simultaneamente e em varias cidades brasileiras, em junho de 2013. O mote inicial de tais manifestacoes foi o aumento da tarifa do transporte publico, mas novas (e nao tao bem definidas, tampouco universalmente compartilhadas) pautas foram sendo agregadas.

    Neste universo heterogeneo de pautas e pessoas, um grupo teve sua participacao destacada--os Black Blocs. Com caracteristicas muito proprias tanto de apresentar-se publicamente (todos vestidos e mascarados de preto) quanto de atuacao propriamente dita (diversidade tatica, incluindo acoes pacificas e violentas), tal grupo passou a chamar a atencao de quem acompanhou as manifestacoes. A midia teve papel importante nesse "desvio de olhar" para tais manifestantes, pois adotou a postura de trata-los generica e generalizadamente como "vandalos" e, em certa medida, acabou por adiantar as justificativas para a adocao a posteriori de medidas legislativas de natureza proibitoria em relacao ao uso de mascaras.

    Tomando-se o protagonismo do referido grupo neste cenario de manifestacoes que ocorreram a partir de junho de 2013 como objeto de analise, apresenta-se a problematica do presente texto: a relacao entre a forma de apresentacao e atuacao dos Black Blocs e a consequente reacao legislativa proibindo o uso de mascaras nas manifestacoes em espacos publicos. Postulando-se que os membros do grupo valem-se da mascara como um elemento identitario de sua atuacao, apresentam-se argumentos que visam a defesa de tal postura como uma forma de expressao e, ainda, incluida no rol das categorias de possibilidades de fruicao do direito a liberdade de expressao. Defende-se, ainda, que a proibicao do uso de mascaras resulta em um mecanismo de vedacao e de criminalizacao da liberdade de expressao, ainda que se valha do argumento legal da vedacao do anonimato.

    Para melhor enfrentamento da tematica ora proposta, dividiu-se o artigo em quatro itens. O primeiro destina-se a estabelecer um retrato das manifestacoes ocorridas em 2013, apontando algumas de suas caracteristicas. Na sequencia, apresentam-se um breve historico sobre as origens e as motivacoes politicas dos Black Blocs e da sua participacao nas manifestacoes aqui no Brasil, focando, em especial, na analise dos sentidos que podem ter o uso das mascaras e a atitude violenta de alguns desses manifestantes, e como isso acabou por influenciar e gerar debates publicos e reacoes institucionais. E tambem neste momento que se pretende apresentar o que se toma por liberdade de expressao e qual a relacao que tal liberdade tem com a tatica black bloc. O terceiro item visa ao mapeamento das legislacoes municipais e estaduais que foram produzidas no periodo pos manifestacoes de 2013 e que resultaram na proibicao do uso de mascaras, tendo como objetivo postular a existencia de uma relacao entre repressao e legalidade neste contexto. A titulo de "ultimas palavras", encerra-se o artigo trabalhando o conceito beckeriano de outsider, com vistas a apresentar, como resultados analiticos, que as referidas normas proibitivas, quando postulam o uso das mascaras como ato ilegal (ou desviante) com fulcro na vedacao do anonimato, vestem de institucional um processo que e, de fato, o de cerceamento da liberdade de expressao e de criminalizacao de movimentos populares.

    Como criterio metodologico, vale-se de abordagem hermeneuticolinguistica como forma de empoderamento da literatura (multidisciplinar) e dos documentos legislativos coletados e interpretados ao longo da pesquisa, procurando estabelecer, nao um sentido "univoco", mas um sentido originario que estabeleca as condicoes de possibilidade para um processo de compreensao sobre a relacao entre o protagonismo "mascarado" dos Black! Blocs durante as manifestacoes ocorridas a partir de junho de 2013 no Brasil e a consequente criminalizacao do uso das mascaras. Como tecnica de pesquisa, o presente texto vale-se da utilizacao de fontes primarias, debrucando-se sobre os atos legislativos municipais e/ou estaduais que instituiram a proibicao do uso das mascaras em manifestacoes dadas em espacos publicos, e, de fontes secundarias, com base em literatura multidisciplinar que viabilize o embasamento teorico dos conceitos operacionais pertinentes ao tema.

    Com fulcro na problematica e na organizacao das ideias a serem apresentadas, tomando-se a atuacao dos Black Blocs como convite a um repensar a liberdade de expressao, pretende o presente texto contribuir teoricamente com a discussao em torno da definicao de tal liberdade e dos limites de atuacao juridica do Estado no que diz respeito a protecao e/ou restricao dessa liberdade dentro de uma sociedade democratica.

  2. Primeiro ato ou da "montagem do palco": as manifestacoes de 2013 e suas caracteristicas

    Em junho de 2013 desvela-se, em 12 capitais brasileiras e em muitas outras cidades de medio porte, uma onda de manifestacoes populares que reuniu mais de um milhao de pessoas, cujos com similares em apenas tres momentos da historia do pais: em 1992, no impeachment do ex-presidente Collor de Melo; em 1984, no movimento Diretas Ja, no periodo do regime militar, em luta pelo retorno a democracia; e nos anos de 1960, nas greves e paralizacoes pre-golpe militar de 1964, e nas passeatas estudantis de 68. De acordo com Gohn, os movimentos foram denominados pela midia e outros como "manifestacoes". Segundo a autora, de fato, eles foram, na maioria das vezes,

    manifestacoes que expressam estados de indignacao face a conjuntura politica nacional. As manifestacoes adquiriram, nesses eventos, um carater de movimento de massa, de protesto, de revolta coletiva, aglutinando a indignacao de diferentes classes e camadas sociais, predominando a classe media propriamente dita, e diferentes faixas etarias, destacando-se os jovens (1). A mobilizacao para tais manifestacoes teve como elemento propulsor o anuncio de reajuste das passagens de transporte publico feito pelas prefeituras e governos das principais cidades do pais. O primeiro destes protestos foi organizado em Sao Paulo, focando os organizadores na pressao junto ao prefeito Fernando Haddad e ao governador Geraldo Alckmin para que voltassem atras no aumento em 20 centavos na tarifa do onibus, metro e trens. Nesse mesmo dia, ocorreu uma manifestacao no Rio de Janeiro, em frente a Assembleia Legislativa, para tambem impedir o reajuste da tarifa em 20 centavos. Diante da falta de resposta das prefeituras e dos governos estaduais, novas manifestacoes foram agendadas, atraindo publico cada vez maior. O segundo protesto em Sao Paulo, realizado em frente ao Teatro Municipal, tres dias depois, contou ao menos duas mil pessoas e terminou com depredacoes, pessoas detidas e feridas. Em poucos dias, os protestos foram ganhando cada vez mais adeptos e alcancaram outras capitais. Ja no dia 16 de junho, cem mil pessoas participaram de uma manifestacao no Rio de Janeiro. No dia 20, foi a vez de cem mil manifestantes ocuparem a Avenida Paulista. Em Brasilia, cidade onde os transportes nao foram reajustados, manifestantes ocuparam a Praca dos Tres Poderes e a rampa do Congresso Nacional em uma das cenas mais marcantes da serie de protestos em todo o periodo, houve manifestacoes em 438 cidades do pais, com uma participacao estimada de dois milhoes de pessoas e ampla cobertura jornalistica (2).

    As convocacoes para os atos foram feitas atraves das redes sociais, e a grande midia contribuiu para a adesao da populacao ao noticiar a agenda, os locais e a hora das manifestacoes.

    Contudo, ainda que a motivacao inicial dessas manifestacoes tenha sido o aumento em vinte centavos da tarifa, eles nao foram completamente reduzidos apos o anuncio da reducao da passagem. Dessa forma, a dinamica das mobilizacoes tomou um rumo surpreendentemente diferente do esperado, atraindo os mais diversos grupos politicos e, de maneira espontanea, parte da populacao foi aderindo--e propondo uma multiplicidade de pautas. "Os vinte centavos passaram a significar uma luta por direitos" (3).

    Ha quem defenda que as manifestacoes trasvestiram-se de uma estetica particular. Sob o ponto de vista de Gohn ha pontos que indicam tal estetica: a) em cima da demanda-foco, sem carros de som, o batuque ou as palmas eram instrumentos no percurso das marchas; ainda, b) os jovens organizadores das chamadas para as manifestacoes atuam em coletivos organizados na ultima decada; c) muitos dos jovens que responderam as convocacoes e foram as manifestacoes estavam "em fase de batismo na politica", ou seja, encontravam-se, pela primeira vez, em mo(vi)mento de protagonismo politico coletivo e de exercicio de cidadania critica; d) os coletivos inspiravam-se em fontes diversificadas, de acordo com o pertencimento individual; e) porque rejeitavam liderancas verticalizadas, centralizadoras, tambem nao havia hegemonia de apenas uma ideologia ou utopia; f) a motivacao estava num sentimento de descontentamento; desencantamento e indignacao contra a conjuntura etico-politica de dirigentes e representantes civis eleitos nas estruturas de poder estatal, bem como as prioridades nas obras e acoes selecionadas e seus efeitos na sociedade; g) nao havia grandes planos de organizacao; h) havia processos de subjetivacao na construcao dos sujeitos em acao--cada um com sua cartolina e sua mensagem; i) na estetica individual, predominaram o preto, as mascaras (de gas e outras); j) os ativistas tambem construiram seu "capital militante" antes, durante e depois das acoes (4).

    Independente de tais elementos caracterizarem, de fato, um desenho particular (novo?) de "militancia", se por um lado, num primeiro momento, pareciam ser os manifestantes, seus gritos entoados, sua forma de agir, suas demandas, o que convocava a atencao de quem nao estivesse nas ruas, num segundo momento passou tambem a ter protagonismo a violencia...

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