O Estado democrático constitucional e a atualidade do debate acerca da constituição dirigente

AutorCristiano Tutikian
CargoDoutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Páginas68-87

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1. Introdução

O Estado Democrático de Direito está imerso em problemática referente à legitimidade substancial da atuação estatal, em face da conteudística incorporada pelas constituições do segundo pós-guerra, inclusive pela Constituição Federal de 1988. As Constituições tornaram-se políticas, não apenas estatais, englobando princípios de legitimação do poder, a ponto de ocorrer uma ampliação do campo constitucional, que passou a abranger não somente o Estado, mas também toda a sociedade1.

Por essa razão, o constitucionalismo da contemporaneidade deve sobrepujar o caráter metafísico atribuído ao Direito – legado da modernidade – ultrapassando os limites de uma limitada programaticidade atribuída aos textos normativos constitucionais2, constituindo-se nessa seara o grande debate constitucional: a Constituição deve ser considerada apenas como instrumento de governo, regulador de procedimentos e competências, ouPage 69deve ser compreendida como um plano global que determina tarefas, programas e fins para o Estado e para a sociedade3?

2. Situando o debate constitucional: supremacia da Constituição e Constituição Dirigente

A idéia da Constituição como norma suprema, superior ao direito positivo e por ele inderrogável, remonta à doutrina jusnaturalista. No constitucionalismo inglês, o direito natural foi invocado como limite frente ao poder do rei e às supostas faculdades do parlamento. No célebre Bonham’s Case (1610), o juiz Coke afirmou que, quando uma lei do parlamento opunha-se ao direito comum ou à razão, tal fato seria verificado pelo pró-prio direito comum, que sancionaria o ato com nulidade.

Também a versão puritana e laica do direito natural sustentada por Locke conduzia à idéia de um fundamental law. Os homens que ingressassem em sociedade abririam mão da igualdade, da liberdade e do poder executivo (sancionador) inerente ao estado de natureza, em favor da sociedade, para ser disposto e regulado pelo poder legislativo, como o bem requerido pela própria sociedade. O poder da sociedade jamais poderia ultrapassar o bem comum, sendo obrigado a assegurar a propriedade de todos.

Essa concepção de um direito primário, superior a qualquer outro, não chegou a se consolidar na Inglaterra, mas nas colônias americanas, onde as condições eram mais propícias. A pretensão dos colonizadores era a de legitimar e limitar a ação coletiva, por meio de instrumentos escritos fundamentais. O objetivo da Constituição americana não foi o de limitar o poder, mas o de criar e constituir todo um novo centro de poder, visando à compensação da república confederada, cuja autoridade teria de ser exercida sobre um amplo território, em razão do poder perdido pela separação das colônias da coroa inglesa4. Dessa forma, a Revolução Americana consolidou a idéia de uma Constituição formalizada em um documento escrito e solene, definida como limitada, por conter certas proibições expressas aplicáveis à autoridade legislativa e que, em razão disso, exigia dos tribunais a manutenção de suas cláusulas constitucionais frente a qualquer atoPage 70de oposição ou contrariedade, concepção que está na origem da doutrina do judicial review5.

No final do século XVIII, os princípios constitucionais desenvolvidos por Sieyès afastaram-se das Constituições formadas “en la larga noche de la barbarie feudal”, assim como da gótica e equilibrada Inglaterra, demasiadamente complexa para seu espírito racionalista. Sieyès introduziu na cultura francesa revolucionária um conceito que já havia sido enunciado na Revolução Americana: o pacto constitucional somente pode ser escrito por um poder constituinte, por delegados extraordinários. Da soberania do povo passou-se a um poder constituinte ilimitado que deveria estabelecer os poderes constituídos, os quais, por sua vez, deveriam atuar dentro dos limites demarcados pela própria Constituição6.

A tradição inglesa institucionalizou o sistema de checks and balances, pelo qual a limitação do poder é confiada ao mecanismo espontâneo dos contra-poderes. As limitações dos poderes não são externas, mas internas, derivadas de sua própria composição, pois somente o poder possui condições de limitar o poder.

Já na tradição francesa e continental, adotou-se a estratégia da regra: a limitação do poder é confiada a uma norma superior, a própria Constitui-ção, que fixa seus titulares e o âmbito de seu exercício. Está presente no pensamento de Sieyès, desde o início, essa idéia de supralegalidade constitucional. Sieyès criticou a estratégia da balança, pois não limitaria previamente a totalidade do poder. Entendia que primeiramente era necessário limitar o poder, para que fossem estabelecidos os âmbitos nos quais ele poderia ser exercido, para posteriormente a limitação ser construída de uma forma funcional. Assim, Sieyès formulou uma saída institucional para a estratégia das regras, por meio de um controle de constitucionalidade, ao propor a instituição de um órgão competente para controlar a conformidade da lei com a Constituição7.

Um século e meio depois, Kelsen traçou uma Teoria do Estado e uma Teoria da Constituição, estruturadas e desenvolvidas com base em critérios geométricos puros. Sua construção foi fundamentada como verdadeiraPage 71reação positivista: tinha por objetivo a orientação do Direito com base em dados observáveis e experimentáveis – positivos –, fossem eles provenientes da vontade, das relações sociais ou da própria norma jurídica, rechaçando-se, assim, qualquer influxo do direito natural8.

A partir dessas premissas, Kelsen concebeu sua Grundnorm como fundamento de validade de um conjunto normativo escalonado, de acordo com uma dinâmica interna na qual cada escalão intermediário era concebi-do como executor do anterior e, por sua vez, criador do seguinte, até chegar ao momento da aplicação. Conseqüentemente, a Constituição representa o escalão de direito positivo mais elevado, de modo que a produção das demais normas jurídicas deve por ela ser regulada. Assim, o fundamento de validade de uma lei somente pode residir na Constituição. Nesse ponto, Kelsen levantou a questão de saber a quem deveria a Constituição conferir competência para decidir se, em determinado caso, foram ou não cumpridas objetivamente as normas constitucionais, lançando os fundamentos do controle de constitucionalidade. Entretanto, de acordo com a Teoria Pura, os enunciados normativos, em razão de sua abstração, adquirem verdadeira autonomia em face de referências morais9.

Em 1928, Schmitt lançou sua Teoria da Constituição, primeira obra sistemática que compreende a teoria da Constituição como ramo da teoria geral do direito público10. A crítica que Schmitt faz ao positivismo jurídico é a de deslocamento indevido de questões fundamentais do direito político para o interior de uma Teoria Geral do Estado. Com sua obra, Schmitt busca “superar a divisão, gerada pelo positivismo normativista, entre Teoria Geral do Estado, Direito Constitucional e Política, reabilitando o político na análise dos temas da teoria constitucional”11.

Smend também enfrentou as posições normativistas de Kelsen, refle-tindo sobre o sentido, função e finalidade da Constituição. No mesmo ano em que Schmitt lançava sua Teoria da Constituição, Smend publicava seuPage 72Constituição e Direito Constitucional12. Apresentou a teoria da integração em contrapartida ao positivismo jurídico, destacando não a normatividade da Constituição, mas sua realidade integradora, permanente e contínua, em razão de seus valores materiais próprios13.

As concepções de Schmitt e Smend, que partiram da idéia de Constituição como totalidade dinâmica, levaram à politização do conceito de Constituição. Ligada ao predomínio das Constituições sociais do segundo pós-guerra, notadamente a partir do debate de Weimar, essa idéia dá origem à Teoria Material da Constituição, a qual visa à compreensão da Constituição em conexão com a realidade social, voltada a sua conteudístico14, e não apenas às questões formais e metodológicas que ocuparam as discussões jurídicas dos séculos XVIII e XIX.

O debate constitucional, dessa forma, estabelece-se entre aqueles que compreendem a Constituição apenas a partir de sua estrutura formal, como mero instrumento delimitador de competências e de procedimentos, e aqueles que compreendem a Constituição como um plano global que constitui não somente o Estado, mas também a sociedade, a partir do estabelecimento de programas e fins a serem concretizados.

Desse debate exsurge a noção de Constituição Dirigente, que exprime a força de direção e conformação política do direito constitucional. Ao cunhar a expressão Constituição Dirigente (dirigierende Vefassung), Lerche15visava ao acréscimo de um novo domínio aos tradicionalmente existentes nas Constituições, como imposições permanentes ao legislador16.

Já Canotilho, a partir da construção de Lerche, propõe uma noção de Constituição Dirigente mais ampla e profunda, com o escopo de reconstruir a Teoria da Constituição, por meio de uma teoria material da Constituição, concebida como teoria social17. No dizer de Bercovici:

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O núcleo da idéia de Constituição Dirigente é a proposta de legitimação material da Constituição pelos fins e tarefas previstos no texto constitucio-nal. Em síntese, segundo Canotilho, o problema da Constituição Dirigente é um problema de legitimação. (...). No fundo, a concepção de Constituição Dirigente para Canotilho está ligada à defesa da mudança da realidade pelo direito. Seu sentido, seu objetivo é o de dar força e substrato jurídico para a mudança social. A Constituição Dirigente é um programa de ação para a alteração da sociedade18.

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