O depoimento especial

AutorJadir Cirqueira de Souza
Páginas155-272

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1. A reiterada necessidade da integração sistêmica

A integração sistêmica entre a proteção integral e o sistema de justiça1apresenta dupla face. De um lado, integrantes das instituições públicas e privadas, sem enfrentar os reais problemas de formação, estruturação material e atuação equivocada de vários membros das respectivas instâncias, unem-se e criticam aqueles que não atuam em parceria e/ou em rede.

De outro lado, muitos integrantes das redes e do sistema de justiça são críticos, não aceitam os equívocos e, antes da aderência voluntária às redes, exigem que cada instituição cumpra seu papel, especialmente em relação à necessidade de formação continuada, uma vez que o mínimo de conhecimento técnico é necessário para quaisquer ações.

Atualmente, as redes de proteção e de justiça, quando organizadas adequadamente, muitas vezes não dialogam, não são críticas entre si e contentam-se com ações, atos e medidas individualizadas, sendo evidentemente atuações contrárias aos superiores interesses das crianças, muito embora os discursos sejam opostos, esquecendo-se das altas cifras das violências primária e secundária.

Enfim, segundo as instâncias, todos atuam corretamente, porém os crimes contra crianças e adolescentes não diminuem e/ou reduzem seus drásticos efeitos.

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O sistema de justiça e as redes de proteção funcionam mal; não dialogam; e, muito menos preparam-se adequadamente para enfrentarem as diversas violências praticadas contra crianças e adolescentes, sendo evidente que ainda prepondera o amadorismo institucional, especialmente nas regiões mais pobres do Brasil, quando não se detecta a existência de delegacias, hospitais, etc.

No presente trabalho doutrinário defende-se a atuação em rede, orquestrada, organizada e treinada, inclusive antes da ocorrência dos fatos, porém sem, abrir mão das críticas construtivas e de modificações de posturas institucionais, pois da letargia e da subserviência nada de positivo se pode esperar.

Repita-se, assim: a integração não prescinde do domínio dos fundamentos básicos das profissões, conhecimento das ações de cada instituição e a busca contínua da melhoria sistêmica, através do estudo sistemático do Direito, da Psicologia e da Assistência Social, pelo menos em seus aspectos mais elementares, segundo as advertências de Tilman Furniss.2“...Por outro lado, nós encontramos terapeutas extremamente experientes que lidam com o dano psicológico nas crianças e com relacionamentos familiares disfuncionais. Os profissionais da saúde mental, no entanto, muitas vezes não sabem como lidar com aspectos normativos e com tarefas linear e legal de proteção à criança e prevenção adicional do crime. Terapeutas individuais e de família muitas vezes negligenciam, ou inclusive não admitem, os aspectos legal e linear do caso. Eles positivamente se recusam a tratar pacientes e famílias quando a lei está envolvida, porque vêem qualquer envolvimento legal como incompatível com a posição terapêutica. Se chegam a se envolver, não sabem como lidar terapeuticamente com os aspectos legais. Geralmente eles tentam ignorar o processo legal. O resultado dessa dicotomia é que ambos os lados não se encontram, não compreendem um ao outro e deixam de cooperar. Os terapeutas sentem que a polícia e os juízes “jogam muito duro”, ao passo que a polícia e os serviços de proteção à criança podem achar que os terapeutas são “molóides que destroem evidências e não protegem adequadamente...”

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Foi visto que no âmbito do Direito infantojuvenil existem três sistemas de proteção que se completam e ao mesmo tempo se retroalimentam, além do dever de agir – sempre – em estreita sintonia e conjugação de esforços, especialmente na busca de evitar-se ou pelo menos diminuir o processo de revitimização de crianças e adolescentes.

A interação sistêmica e equilibrada das instituições de justiça e de proteção deve ocorrer, antes e depois dos fatos lesivos, uma vez que as falhas, antes, durante e após, somente prejudicam a parte mais frágil das relações jurídicas submetidas aos diversos profissionais. Enfim, evitar que as lesões e violências ocorram e, se recorrentes agir para debelar seus efeitos é a marca do sistema jurídico preconizado pelo ECA e pela CF, especialmente no art. 227.3Ultrapassados os fundamentos preventivos, com a eclosão dos resultados lesivos aos direitos infantojuvenis, viu-se que os objetivos da nova lei são voltados para a obtenção de nova integração sistêmica, depois da ocorrência dos ilícitos civis, penais e administrativos, ou seja, de forma singela, exige a qualidade das ações protetivas, depois dos fatos ocorridos, dentro da obrigatória integração entre as instâncias.

Portanto, trata-se de legislação federal criada com o nítido escopo de organizar o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente, e ao mesmo tempo estabelecer direitos que se voltam contra o Estado, que ainda não colocou em prática os fundamentos protetivos trazidos com a entrada em vigor do ECA, desde 1990.

Embora equivocada a assertiva de que a nova lei foi criada para estabelecer o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, como se ainda não existisse defesa de direitos,

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sendo que na verdade deve-se considerar que a nova legislação veio para reforçar as defesas e/ou proteções já existentes, inclusive as práticas em curso em vários estados brasileiros, especialmente no pioneiro trabalho do Rio Grande do Sul, bem como o seguimento da Recomendação n. 33/2010 do CNJ.

É que, se aceita a premissa da nova lei que estabeleceu novo sistema de garantias, dever-se-ia aceitar a afirmativa de que, atualmente não existiria lei de garantia de direitos da infância e juventude. Melhor seria, especialmente para evitar tentativas de tornar nulas eventuais ações deflagradas antes da lei, que a nova legislação viesse com a proposta de aperfeiçoamento do sistema de garantias/proteção existente e em vigor no Brasil, pois as práticas em curso limitaram-se a receber o beneplácito legislativo federal.

Portanto, incabível falar-se em práticas irregulares e/ou ilegais, antes da entrada em vigor da lei, posto que, além da permissão jurisdicional nas diversas instâncias de julgamento, inclusive no STF em relação à prática gaúcha4o Conselho Nacional de Justiça, através da Recomendação n. 33/2010, legitimou todas as ações objetivadoras da redução de danos às crianças e adolescentes.5

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Após detida análise do sistema de garantias previsto no ECA, observa-se que a nova lei trouxe as novidades do depoimento especial e da escuta especializada, buscando-se padronizar minimamente as ações do Estado, no âmbito federal, racionalizando-se os sistemas, sem desmerecer as ações protetivas e criminais em curso, pois, se aceita a premissa, diga-se equivocada, teríamos que aceitar o fato de que os depoimentos especiais já realizados, com milhares de processos em curso deveriam ser inutilizados, fato que provocaria sérios danos às vítimas e, com certeza, nem em tese, aventou-se a possível iniciativa.

Assim, sem citar os depoimentos especiais e as escutas especializadas já colhidas, bem como as ações judiciais em curso, a lei foi elaborada para regulamentar as ações, depois da ocorrência dos ilícitos ou danos contra os direitos das crianças e dos adolescentes, trazendo-se caráter nitidamente processual civil, penal e administrativo.

É importante reforçar, mais uma vez, posto que a integração é a tônica da nova lei, de um mesmo fato lesivo aos direitos infantojuvenis poderão ocorrer, simultaneamente, diversas consequências jurídicas, que precisam ser enfrentadas de forma sistêmica e em redes de proteção e atendimento. Por exemplo, uma criança vitimizada pelos abusos sexuais do pai, padrasto, tio, etc, certamente, além das medidas criminais (prisão), precisará das medidas de proteção civil (afastamento do agressor da moradia comum) e administrativa (multas – punitiva, e tratamentos-protetivas), tudo ao mesmo tempo e organizadas entre as instituições públicas e privadas que atuam em rede, adotando-se, por força do art. 6º PU da Lei n. 13.431/17, as regras e princípios do ECA e da Lei Maria da Penha, com os cuidados e paradigmas inerentes à proteção integral das vítimas de crimes e demais ilícitos.

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Na esfera administrativa existem múltiplas ações e medidas de proteção, no rol dos arts. 101 e 129 do ECA. Conseguir tratamento médico; obtenção de vaga em escola; tratamento psicológico; fisioterapia, etc são medidas de proteção, que podem e devem ser obtidas nas vias administrativas municipais. As requisições do Conselho Tutelar devem garantir a imediata proteção e tratamentos, e sem a necessidade de intervenção do Ministério Público e, muito menos do Poder Judiciário, paralelamente às ações civis e penais em curso e/ou a serem deflagradas.

No âmbito civil, também independentemente da esfera criminal, será possível, através de ações do Ministério Público e/ou outro legitimado ativo, garantir o imediato afastamento do abusador do ambiente familiar; o pagamento de reparação de danos materiais e morais; os tratamentos médicos, psicológicos, etc, sempre com prévia demons-tração de falhas e/ou insuficiência do sistema administrativo.

Na esfera criminal será possível garantir a prisão em flagrante, preventiva ou temporária, além de eventuais medidas restritivas em relação ao autor dos supostos abusos sexuais, entre a narrativa inicial dos...

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