Depoimento sem dano e falsa memória: o novo dilema da justiça brasileira

AutorEduardo Cambi/Priscila Sutil de Oliveira
Páginas592-623

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1. Introdução

Um dos maiores problemas encontrados nos processos criminais na atualidade é a necessidade de realizar um julgamento baseado apenas em provas testemunhais. Nesses casos, o magistrado precisa analisar com cautela cada narrativa trazida para o processo, uma vez que tais depoimentos podem demonstrar apenas parcela da realidade, pois, sendo a verdade o todo – constituído pela soma de todas as partes –, é impossível ela ser reconstituída pelo mecanismo processual3.

Durante as oitivas, as testemunhas declaram situações vividas, presenciadas ou imaginadas, mas com uma característica singular: narram e produzem a situação da maneira pretendida, ou seja, dependendo do impacto do fato4 e do interesse, a narrativa poderá ser ou não fantasiosa.

Há também o caso daqueles narradores que se utilizam das imagens em sua memória para descrever o ocorrido, podendo elas ser manipuladas ou não pelo próprio declarante, surgindo mais dilemas para o magistrado resolver: Até que ponto é possível confiar na palavra das testemunhas? Quando se pode afirmar que os fatos contados são verídicos ou fantasiosos? Quando a versão é resultado de uma falsa realidade?

O objetivo deste trabalho, além de analisar o método de inquirição de crianças e adolescentes denominado de depoimento sem dano, é aprofundar os estudos a respeito das falsas memórias e seus reflexos processuais. Isso porque, com o desenvolvimento de outras ciências, torna-se cada vez mais difícil para o Judiciário separar o real da fantasia, ainda mais quando as víti-

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mas são crianças suspeitas de terem sofrido abusos sexuais, em especial aqueles que não deixam vestígios físicos, causados por genitores ou familiares.

2. Depoimento sem dano

Considerando o aumento no número de casos judiciais envolvendo, como supostas vítimas, crianças e adolescentes, torna-se premente buscar técnicas processuais adequadas para a oitiva dessas pessoas em desenvolvimento com o fim de se conseguir a melhor apuração da ocorrência de ilícitos.

Entre os fatores que justificam a ampliação dos depoimentos de crianças e adolescentes estão: i) a inexistência de outros meios de provas, em razão da clandestinidade do ilícito; ii) o fato de ser uma forma de combater a impuni-dade; iii) a necessidade de dar valor probatório especial ao relato da vítima;
iv) a presunção de veracidade do depoimento infantil; v) a ausência de motivos para querer incriminar falsamente o acusado5.

Estatísticas realizadas em 2007 demonstram que em 40% dos casos de abuso sexual o culpado é o pai e, em outros 30%, é o padrasto ou o namorado da mãe. Dados noticiados em audiência pública, no Senado Federal, em 23 de julho de 2008, apontaram que a violência sexual vitima cerca de 170 jovens por dia no Brasil (80% deles com menos de 12 anos de idade), sendo que isso geralmente ocorre no ambiente doméstico, sem testemunhas, sendo praticada por quem deveria protegê-los6. O depoimento formal, porém, não inibe o medo das crianças de falar sobre sua intimidade na frente de outras pessoas.

Quando o abuso sexual é incestuoso, a vítima não encontra abertura para falar, o que contribui para o descrédito do depoimento e leva à alarmante conclusão de que menos de 10% dos processos de abuso sexual de crianças chegam à condenação no Brasil7.

Como juízes, membros do Ministério Público e advogados normalmente não estão preparados para quebrar as barreiras que permitiriam a criança falar, o resultado é a impunidade dos crimes sexuais e a total desqualificação da vítima que faz a denúncia. Isso faz com que o agressor jogue a culpa na criança, que, além de arcar com a responsabilidade, ainda tem o peso de conviver com o agressor depois da revelação8. Em alguns casos, a pressão pode ser tanta que leva à tentativa de suicídio.

Pensando na proteção dessas pessoas em desenvolvimento, foram realizadas adaptações na forma de realização de audiências, para melhor produzir

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a prova testemunhal. Em São Paulo, por exemplo, criou-se o Projeto de Atendimento Não Revitimizante de Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência (2011) e, em Curitiba, iniciou-se a aplicação de uma Audiência Sem Trauma (2011). A primeira experiência de Depoimentos Sem Danos aconteceu em 2003, na 2ª Vara de Infância e Juventude da cidade de Porto Alegre-RS. Utilizando a técnica do depoimento sem dano, as varas criminais da capital gaúcha têm conseguido o índice de condenação de 59%, seis vezes maior que a média nacional9.

O objetivo da técnica do depoimento sem dano é facilitar a exposição dos fatos por parte das crianças para permitir que elas revelem a ocorrência (ou não) de uma violência sexual, sem incutir na vítima um sentimento de culpa ou vergonha10.

A inquirição é realizada por um profissional treinado, havendo um sistema de áudio e vídeo para que os demais sujeitos processuais (juiz, promotor de justiça, advogado, acusado e familiares) possam acompanhar as perguntas e as respostas. Por intermédio de microfones e fones de ouvido, é possível que o membro do Ministério Público, o advogado do acusado e o magistrado façam perguntas ao entrevistador, que, da melhor maneira possível, pode reelaborar a pergunta à criança ou ao adolescente inquirido.

Todo esse trabalho deve ser gravado, transcrito e anexado aos autos, evitando-se assim uma nova inquirição, ou seja, trata-se de uma técnica para colher o depoimento infantil sem prejuízos11, traumas e revitimização do ofendido (fenômeno caracterizado por submeter a vítima a novo sofrimento decorrente da reiteração das lembranças da conduta criminosa – em repetidas oitivas, em diversos ambientes diferentes e para diversos interlocutores, ou pela forma como tal resgate é feito, sem que o inquiridor leve em consideração a sua situação de exacerbada vulnerabilidade emocional e intelectual, ou a condição dela ser ainda uma pessoa em desenvolvimento)12.

Em outras palavras, o depoimento sem dano aperfeiçoa a técnica de oitiva de vítimas crianças e adolescentes, tendo as seguintes vantagens em relação aos depoimentos tradicionais13: i) a vítima chega mais cedo e fica em uma sala diferente da do agressor, protegida de ameaças, ao invés de ter contato com o acusado na entrada da audiência; ii) a sala em que se dá a oitiva tem brinquedos, almofadas e material para desenho e a criança fala com uma psicóloga ou uma assistente social, com quem conversa por meia hora antes da audiência, diferente do que normalmente acontece, quando a vítima é colocada em uma sala de audiência formal, onde a criança conversa com o juiz na frente

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do agressor, do promotor de justiça e do advogado; no depoimento sem dano, o magistrado, o promotor e o advogado acompanham a conversa entre a vítima e a psicóloga ou a assistente social, sem interferir, por meio de um aparelho de televisão; iii) antes do depoimento, a técnica pergunta como a criança chama suas partes íntimas e usa esses nomes, fala no seu ritmo e o depoimento fica gravado em vídeo, enquanto que, no depoimento tradicional, o juiz usa termos adultos, como vagina, pênis e penetração, repetindo tudo que a criança diz, na frente dela, para que o escrivão faça constar dos termos da audiência; iv) a assistente social fala abertamente sobre detalhes dos abusos, estimulando a criança a falar também, enquanto que, no depoimento formal, o magistrado, por não possuir conhecimento técnico necessário, não está preparado para ouvir a vítima, o que muitas vezes acaba por constrangê-la e impede que ela faça as descrições essenciais para a produção da prova; v) a técnica dá o tempo para a criança criar coragem e falar, podendo usar, para isso, bonecos e marionetes para ajudá-la na descrição da cena do abuso, ao passo que, no depoimento tradicional, a criança não responde às perguntas do juiz e das partes, resultando infrutífera a atividade probatória; vi) a assistente social explica diversas vezes que a criança não é culpada, argumentando que não é o depoimento dela que vai fazer o adulto ser preso, mas sim o que ele fez, ao contrário do que ocorre normalmente, quando as vítimas se sentem culpadas pelo abuso e pelo que vai acontecer com o agressor.

O Conselho Nacional de Justiça, em sua 116ª reunião, de 9 de novembro de 2010, editou a Recomendação 33 para que os tribunais implantem “sistemas apropriados para a tomada de depoimento de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de crimes”, por intermédio de “sistemas de gravação de áudio e vídeo dos depoimentos dos menores, que devem ser tomados em ambiente separado da sala de audiências, com a participação de profissional especializado”.

Por sua vez, o Projeto de Lei 156/2009 (de novo Código de Processo Penal), aprovado pelo plenário do Senado Federal em dezembro de 2010, prevê o depoimento sem dano no artigo 194 in verbis:

O procedimento de inquirição observará as seguintes etapas: I – a criança ou o adolescente ficará em recinto diverso da sala de audiências, especialmente preparado para esse fim, devendo dispor de equipamentos próprios e adequados à idade e à etapa evolutiva do depoente; II – a criança ou o adolescente será acompanhado por um profissional devidamente capacitado para o ato, a ser designado pelo juiz; III – na sala de audiências, onde deverá permanecer o acusado, as partes formularão perguntas ao juiz; IV – o juiz, por meio de equi-

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pamento técnico que permita a comunicação em tempo real, fará contato com o profissional que acompanha a criança ou o adolescente, retransmitindo-lhe as perguntas formuladas; V – o profissional, ao questionar a criança ou o adolescente, deverá simplificar a linguagem e os termos da pergunta que lhe foi transmitida, de modo a facilitar a compreensão do depoente, observadas as suas condições pessoais; VI – o depoimento será gravado em meio...

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