... para depois dividir: notas sobre Reforma Previdenciaria e assimetrias raciais no Brasil/... and then we divide: notes on the Social Welfare Pension Reform and racial asymmetries in Brazil.

AutorPaixão, Marcelo

Reforma da Previdência e desigualdade racial: uma introdução

Na literatura sobre a economia da discriminação e sobre a jurisprudência das ações legais no combate à discriminação racial, há o conceito de efeito diferencial (differential effect). O termo expressa as sequelas desiguais de determinadas ações provenientes do setor privado e público, mesmo que aquelas decisões não tenham sido assumidamente fundamentadas por uma lógica discriminatória (BLANK; DABADY; CITRO, 2004). Tal efeito ocorre tendo em vista o modo pelo qual os diferentes contingentes da população estão distribuídos na pirâmide social ou no território. Seria, por exemplo, o caso de uma empresa que exigisse que os candidatos para uma oferta de emprego tivessem concluído o ensino fundamental em escolas particulares localizadas nas áreas nobres da cidade. Neste caso ilustrativo, seria bastante reduzida a probabilidade de sucesso de candidatos provenientes de classes sociais mais pobres ou de pessoas negras, isto além do fato de que as razões para esta opção não se justificariam em termos gerenciais. São a estas distintas probabilidades de impacto de ações supostamente neutras (ou daltônicas, quando se leva em conta o critério de cor ou raça) que a literatura classifica de efeito diferencial da discriminação.

No seio da atual controvérsia sobre o futuro da previdência social não foi identificada nenhuma contribuição que tenha defendido expressamente a reforma do sistema com a intenção de ampliar as desvantagens raciais no Brasil. Porém, infelizmente, é forçoso observar que, da copiosa literatura dedicada ao tema, não vem sendo observado nenhum esforço para ao menos saber se tal realidade não se manifestaria no caso de alguma mudança ser implementada.

Até o momento, a única contribuição sistemática para o entendimento deste assunto foi o Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil (2009-2010), editado pelo Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (PAIXÃO et al., 2011). Este estudo foi baseado em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), tendo por eixo a contribuição do capítulo da seguridade social presente na Constituição brasileira de 1988, a Constituição cidadã, sobre as desigualdades raciais 30 anos depois de sua promulgação. De qualquer forma, no final da década de 2000 a correlação de forças na sociedade brasileira era outra e as propostas de reforma apresentadas ainda não tinham chegado ao ponto em que se encontram atualmente, quando se vislumbram não somente mudanças pontuais, mas uma completa destruição do sistema de seguridade social no país, tal como originalmente pensado no final da década de 1980.

Em suma, tendo por eixo o problema da Reforma da Previdência Social no Brasil à luz das assimetrias de cor ou raça, o presente trabalho objetiva unificar esses dois campos deste debate que, de resto, o senso comum leva a compreender como inteiramente desvinculados. Esperamos que destas evidências possamos ao menos problematizar a forma pela qual a controvérsia sobre o futuro da previdência social no Brasil está sendo realizada. Por outro lado, já céticos de que este esforço poderá redundar em algum efeito prático para as decisões que estão para serem adotadas, acreditamos que o presente exercício ao menos traz consigo uma importante dimensão pedagógica, mostrando em termos práticos o próprio significado da teoria do efeito diferencial para o caso brasileiro.

Sistema previdenciário no Brasil: panorama histórico recente

O atual sistema previdenciário brasileiro é produto do desenho estabelecido no capítulo II (Da seguridade social) da Constituição Cidadã de 1988. A Carta Constitucional de 1988 teve como característica maior a preocupação com as questões sociais (BRASIL, 1988). Mais precisamente no art. 3, estão estabelecidos como princípios fundamentais da República a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III) e a promoção do bem comum, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e outras formas de discriminação (inciso IV). A importância da questão social é reforçada na parte dedicada à ordem social, na qual um capítulo específico, o art. 194, define a seguridade social como "[...] um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social" (BRASIL, 1988, n. p.).

A esse bloco de ações a Carta Maior destinou, além dos recursos provenientes dos orçamentos das três esferas de governo, um conjunto de contribuições sociais sobre a folha de salários e demais formas de rendimento do trabalho, sobre receita ou faturamento, e sobre o lucro. Estabeleceu-se, assim, no âmbito do sistema de seguridade, uma arquitetura institucional que proporcionava, além de uma autonomia financeira, a capacidade de ações de compensação entre as três áreas, de forma a manter seu equilíbrio financeiro. A Constituição de 1988 criou, portanto, as bases da política social brasileira, bases essas que para alguns autores constituem o nascituro de um Estado social (DRAIBE, 1993).

A literatura atual sobre a estrutura da previdência social no Brasil abriga importantes divergências. No plano analítico, o pano de fundo é se o modelo previdenciário de repartição, tal como o adotado no Brasil (com aspectos inspirados no modelo beveridgeano), é razoável e justo socialmente. Assim, as vozes críticas ao desenho constitucional de 1988 apontam que o sistema atual favorece as gerações futuras em detrimento da atual, isto além de supostamente conter aspectos que poderiam estar favorecendo os contribuintes e beneficiários mais ricos em detrimento dos mais pobres (GIAMBIAGI; PINTO; ROTHMULLER, 2018; SANTOS, 2017; TAFNER; GIAMBIAGI, 2007).

Já no plano atuarial, a controvérsia diz respeito a se afinal a previdência social é ou não deficitária. As vozes mais ácidas apontam para um crescente déficit previdenciário, acompanhando o progressivo envelhecimento da população brasileira e o aumento do tempo médio de pagamento dos proventos após a aposentaria (GIAMBIAGI; PINTO; ROTHMULLER, 2018; AFONSO, 2018; VARSANO; MORA, 2007). Por sua vez, os que identificam um quadro menos sombrio apontam que o sistema previdenciário possui uma fonte de arrecadação própria, o orçamento da seguridade social, formado principalmente pelas contribuições previstas pela Constituição, tais como o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e a Contribuição Sobre o Lucro Líquido (CSLL). Assim, levando-se em conta estes valores, em diversos anos a previdência social brasileira teria sido superavitária. Nesta abordagem, mesmo os recentes déficits do orçamento da seguridade social seriam conjunturais, decorrentes da recessão econômica que tomou conta do país, cenário que poderia ser revertido em um momento de melhoria da economia brasileira (DIEESE/ANFIP, 2017; FAGNANI; HENRIQUE; LÚCIO, 2008; GENTIL, 2008, POCHMANN; CAMPOS, 2008).

Obviamente, o debate sobre o modelo previdenciário deve ser realizado tendo em vista sua estrita dimensão atuarial e fiscal. Afinal de contas, não faz sentido abordar uma política pública sem levar em consideração sua fonte de financiamento. Contudo, por detrás de uma controvérsia técnica, se esconde uma outra, que é de natureza política. As diferentes leituras sobre o atual desenho da seguridade social no país estão imbuídas de concepções distintas de sociedade e alternativas para o desenvolvimento econômico do país. O modelo de capitalização é fundamentalmente estruturado na mercantilização da força de trabalho, tal como nas clássicas definições de Karl Polanyi (2000) e Esping-Andersen (1990). Isto implica a adoção de um desenho que privilegia as decisões de investimento e benefícios estritamente individuais, secundarizando os aspectos reportados à solidariedade social, tal como seria o caso do modelo de repartição, seja em sua forma corporativista, seja dentro do modelo beverigdeano (BEVERIGDE, 1943; WERNECK VIANNA, 2000; CASTEL, 1998).

Assim, apesar de sua capa técnica, as controvérsias acerca da previdência social nos levam de volta ao final dos anos 1980 e às razões pelas quais, após um longo período de progressivo aumento da concentração de renda, se optou pela adoção de um, e não de outro modelo. De qualquer forma, coerente com o que ocorre com o conjunto do debate sobre o futuro da previdência social, também na controvérsia sobre a progressividade/regressividade do sistema atual, o tema das desigualdades de cor ou raça segue notavelmente ausente da quase totalidade das contribuições. E, certamente, a ausência deste componente não deixa de ser um aspecto que fragiliza os que defendem a preservação dos princípios que nortearam a Carta Constitucional de 1988.

Contribuições da Constituição de 1988 para a redução das desigualdades raciais

A Constituição de 1988 foi promulgada em um cenário extremamente difícil para a economia brasileira. Naquele ano, a inflação chegaria a quase 1.000% e a quase a 2.000% no ano posterior. O Produto Interno Bruto (PIB) em relação ao ano anterior ficou praticamente estagnado, sendo na verdade o penúltimo ano de uma década considerada pelos economistas como perdida. Portanto, a consolidação daquele proto-Estado Social deveria se dar a partir da manutenção e do aperfeiçoamento dos instrumentos criados pelo constituinte originário. Mas não foi isto o que ocorreu.

Já no começo da década de 1990, a visão neoliberal suscitou a adoção de medidas no sentido contrário, ou seja, do gradativo desmonte do sistema. Isso se deu no Governo FHC, inicialmente, com a adoção, em 1995, do Fundo Social de Emergência, mais tarde transformado na Desvinculação de Receitas da União (DRU), mecanismo que permitia que o governo pudesse fazer remanejamentos de...

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