Desastres invisíveis e práticas de luta. Um olhar antropológico sobre um caso de ativismo organizado pelos trabalhadores do amianto em osasco, São Paulo

AutorAgata Mazzeo
Páginas11-19

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Introdução

Agata Mazzeo *

Os desastres ambientais, sociais e pessoais causados pela exposição ao amianto são lentos, invisíveis e silenciosos, por várias razões. A minha investigação centra-se nas razões relacionadas à doença e/ou ao risco de contrair uma doença causada pela exposição às cancerígenas fibras de amianto. As doenças relacionadas ao amianto são caracterizadas por um longo período de latência. Esse fator dificulta (se não impossibilita) reconstruir precisamente a história de uma exposição ao pó de amianto e, por conseguinte, determinar uma precisa relação de causa-efeito entre a exposição e o aparecimento de uma doença por ela causada. Além disso, em diferentes contextos históricos e sociais, os lobbies do amianto negaram e continuam a negar o sofrimento social e pessoal causado por tais desastres. Contudo, apesar de uma invisibilidade construída, em diferentes contextos geopolíticos, os atores sociais contaminados e/ou envolvidos nessas experiências de sofrimento, estão empreendendo práticas para finalmente tornar visíveis e mudar as dinâmicas dos desastres dos quais eles são vítimas.

O presente ensaio discute dados coletados durante um trabalho de campo etnográfico de dez meses, articulado em duas fases (entre agosto de 2014 e outubro de 2015) e conduzido na cidade de Osasco (Grande São Paulo). O objeto de pesquisa foi fundamentado nas práticas de luta empreendidas pelos ativistas da ABREA-Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto, composta, em sua maioria, por ex-trabalhadores da fábrica local Eternit, aberta no ano de 1941, fechada em 1993 e demolida em 1995 (IBAS 2012).

O estudo antropológico no qual a pesquisa conduzida no Brasil está baseada inicia-se com uma investigação, em 2009, com uma experiência da doença causada pela exposição ambiental às fibras de amianto dispersas a partir de uma fábrica de fibrocimento, a Fibronit, ativa de 1935 a 1986 e localizada na cidade de Bari, capital da região da Puglia (Itália). Posteriormente, em 2012, um segundo estudo foi realizado em Casale Monferrato (Alessandria), na região de Piemonte. Naquela ocasião, a pesquisa teve como foco principal a mobilização civil organizada pelas vítimas da poluição de amianto causada pela maior fábrica de fibrocimento da Europa de propriedade da empresa multinacional Eternit, ativa de 1906 a 1986, e situada em Casale Monferrato. O envolvimento sociopolítico das vítimas, dos familiares

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de pessoas que morreram em decorrência de doenças relacionadas à exposição ao amianto e dos cidadãos expostos, foi interpretado como um processo que teve origem na experiência subjetiva do sofrimento vivido com o seu próprio corpo e determinado pelas dinâmicas políticas envolvidas no processamento do amianto.

No Brasil, as questões relacionadas a tal mineral levantam problemáticas de caráter político, econômico, social e de saúde pública muito complexas (Castro et al. 2003). Além de ser um país onde ainda se processa o amianto, de fato, o Brasil é também um dos maiores países produtores de amianto. Pertence ao estado de Goiás a terceira mina de amianto crisotila do mundo (Locca 2011).

No âmbito de um projeto com o objetivo de conduzir uma etnografia multissituada (Marcus 1995), a decisão de prosseguir os estudos em Osasco foi baseada na consideração das profundas conexões histórico-sociais e culturais existentes entre Osasco (Brasil) e Casale Monferrato (Itália).

Assim como os desastres causados pela laboração do amianto seguem trajetórias transnacionais, as formas de ativismo surgidas como práticas de resistência e reação a estes assumem também uma dimensão que supera as fronteiras nacionais. No caminho da minha formação acadêmica, contingências e experiências de vida me conduziram a escolher a trajetória que conecte Casale Monferrato e Osasco, mas permanece a consciência de que essa representa só uma das muitas conexões que atravessam as diversas questões relacionadas ao amianto no contexto global.

Desastres invisíveis

O amianto é um mineral que era, e ainda é, amplamente utilizado, especialmente na indústria da construção civil, por suas características físicas, principalmente à resistência ao fogo e à capacidade de combinar-se com outras matérias-primas por sua natureza fibrosa (Assennato 2003).

As fibras que o compõem, no entanto, são altamente cancerígenas e podem causar, quando inaladas, doenças respiratórias e vários tipos de câncer, incluindo o mesotelioma maligno, patologia fatal relacionada especificamente à exposição ao mineral, podendo aparecer até trinta anos após o primeiro contato (Musti 2009; Raile e Markowitz 2011).

As fibras de amianto, de fato, podem ser facilmente inaladas e, graças ao seu tamanho microscópico e a sua forma de gancho, podem ficar muito tempo nos pulmões e nas membranas que cobrem os órgãos vitais e causar, ao longo do tempo, doenças fatais. Até hoje, as doenças relacionadas ao amianto reconhecidas pela ciência biomédica são asbestose, câncer de pulmão, laringe e ovário, e o mesotelioma maligno (INAIL 2015). Este último é um câncer mortal com uma expectativa de vida no momento do diagnóstico de 9 meses (INAIL 2015).

No mundo, mais de 107 mil pessoas morrem a cada ano por causa do amianto e mais de 125 milhões ainda estão expostas nos locais de trabalho (WHO 2010). Os primeiros estudos médicos que analisaram a carcinogenicidade das fibras de amianto remontam à segunda metade dos anos sessenta, quando o grupo de trabalho do Dr. Irving Selikoff investigou a relação entre a exposição às fibras de amianto e o aparecimento do mesotelioma maligno, com base na observação de casos que ocorreram entre os residentes de uma área próxima a uma mina de amianto na África do Sul (Selikoff et al. 1965). Contudo, apesar das descobertas e do número crescente de mortes relacionadas à exposição ao amianto, existe uma parte, mesmo que mínima, de expoentes do saber biomédico, afirmando que seria possível o uso controlado de alguns tipos de minerais de amianto sem ameaças à saúde dos trabalhadores e dos cidadãos (Marsili et al. 2016; Terracini e Mirabelli 2016). Os discursos e as categorias biomédicas elaborados por estes cientistas relevam o carácter contingente e não absoluto dos paradigmas científicos (Kuhn 1995) e comprovam como o sistema cultural representando pelo saber biomédico (Kleinman 1980) entrelaça-se com as forças de poder geralmente consideradas externas a ele, sendo o conhecimento biomédico comumente concebido como um saber estrito científico e, por isso, neutral e objetivo.

Em ocasião do maior e primeiro julgamento contra uma multinacional do cimento-amianto acusada de desastre ambiental em razão dos números de mortes e casos de doenças registrados na cidade de Casale Monferrato, procuradores e advogados analisaram documentos comprobatórios de que os lobbies do amianto, atuando no cenário internacional, exerceram um verdadeiro controle sobre a produção de conhecimento e sobre a comunicação dos riscos relacionados à exposição ao amianto, já conhecidos pelo menos desde a metade dos anos sessenta (Rossi 2012).

Além disso, nos lugares onde a economia relacionada ao amianto era particularmente forte, qualquer forma de conscientização entre os trabalhadores e os cidadãos expostos era impedida por meio de práticas de negação do risco

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(Rossi 2012). Por exemplo, referindo-me às narrativas dos meus colaboradores de pesquisa, na Itália e no Brasil, era práxis comum que os trabalhadores que mostrassem os primeiros sintomas de doenças relacionadas ao amianto fossem imediatamente transferidos para outros departamentos ou demitidos, de modo que os colegas de trabalho não soubessem o que estava acontecendo e não levantassem suspeita. Por exemplo, na Itália quando uma pessoa morre, é costume colocar cartazes funerais na frente dos lugares mais significativos da vida do falecido. Em Casale Monferrato, era proibido colocar esses cartazes na frente dos portões da fábrica para evitar a divulgação das notícias das mortes entre os trabalhadores.

A comunicação do sofrimento que estava já sendo causado devia ser proibida e limitada (Rossi 2008, 2012). Igualmente, apesar de os trabalhadores serem submetidos a exames médicos periódicos nas fábricas, estas visitas médicas não revelavam nenhuma alteração fisiológica por causa da exposição ao amianto, mesmo na presença de sintomas. Além disso, os resultados desses testes não eram entregues para os trabalhadores, os quais não recebiam nenhuma declaração escrita. A comunicação sobre o estado de saúde dos trabalhadores era controlada pelos empregadores, os quais não tinham nenhum interesse em divulgar as informações de forma clara e detalhada. Além disso, os gerentes das fábricas nos contextos locais, colocando em prática as disposições elaboradas aos...

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