Desconsideração inversa da personalidade jurídica. Análise jurisprudencial do instituto frente à ausência de previsão legal

AutorMichele Karim Bou Karim - Rafael Magnotti Miyaoka - Sofia Lima Franco
Páginas181-198

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1. Introdução

Apesar do êxito inegável da aplicação prática da disregard doctrine no Brasil, respaldada pelo art. 50 do CC, a doutrina da desconsideração da personalidade jurídica encontra ainda sério obstáculo no que concerne à inibição de ocorrência de fraude. Tal evento é claramente ilustrado em casos nos quais o sócio esvazia seu patrimônio e o transfere para a pessoa jurídica da empresa com o intuito de se esquivar de deveres e obrigações adquiridos de atividades em caráter particular. Ocorre então uma espécie de "blindagem" do próprio patrimônio, que irá se confundir com o capital da empresa, o qual funciona como escudo para o sócio.

Dessa forma, o empresário continua a usufruir de seu patrimônio, ainda que transferido à pessoa jurídica que controla.

Diante desta limitação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, tanto a doutrina quanto a jurisprudência pátria acolheram a ideia da sua desconsideração inversa, tendo em vista a ausência de dispositivo legal específico.

2. Histórico

Foi a Alemanha responsável por evocar pioneiramente a teoria da desconsideração inversa na doutrina jurídica na década de 1950. A obra de Ulrich Drobnig, de título Ha-

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ftungsdurchgriff bei Kapitalgesellschaften,1

consagrou a teoria, através da classificação de quatro modelos nos quais a desconsideração seria viável. Um deles fazia referência ao que hoje conhecemos como desconsideração ou "penetração" invertida.2O emprego da teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica ecoa com mais vigor nos últimos anos no Direito Brasileiro - sobretudo após o julgamento do REsp 948.117 -, o que não indica ser este instituto inédito no ordenamento jurídico pátrio. Desde 1960 sua aplicação já se fazia notável, mesmo anteriormente a qualquer disciplina doutrinária, conforme constata Fábio Konder Comparato.3Foi o caso do julgamento da 11ª Vara Cível do Distrito Federal em 25.2.1960 pelo Juiz Antônio Pereira Pinto, no qual se decidiu pela não aplicação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica utilizada de forma indevida, como no caso de fraudes e uso desvirtuado, em que há desvio do seu escopo social.

Lê-se na sentença, publicada na RF 188/269: "É pacífico, assim na doutrina como na jurisprudência estrangeiras, que se deve, se o diretor ou acionista se serve fraudulentamente da sociedade para fins pessoais, prescindir da existência da sociedade e considerar o ato como se fosse praticado diretamente pelo acionista soberano interessado. Isso porque, se uma pessoa natural contraiu deter-minada obrigação de fazer ou não fazer, não pode subtrair-se ao seu cumprimento por via de sua ocultação atrás de uma sociedade anônima, pois, se tal ocorrer, o juiz, entendendo que a estrutura formal da pessoa jurídica foi utilizada de maneira abusiva, prescindirá da regra fundamental que estabelece a separação radical entre a sociedade e os sócios, a fim de que não vingue o resultado contra o Direito, que se tem em vista. Existe um abuso quando se trata, com a ajuda da pessoa jurídica, de burlar a lei, violar obrigações contratuais ou prejudicar fraudulentamente terceiros. Supera-se, daquele modo, a forma externa da pessoa jurídica para alcançar as pessoas e bens que sob seu manto se escondem. A investigação se situa, portanto, dentro da chamada concepção ‘realista’ da pessoa jurídica, a qual entende que é possível e até obrigatório ‘atravessar a cortina daquele conceito formal’, que estabelece uma radical separação entre a pessoa jurídica e os membros que a integram, para julgar os fatos mais de acordo com a realidade, de maneira que permita evitar ou corrigir perigosos desvios na sua utilização. Já se começa a afirmar que não basta o frio e externo respeito aos pressupostos assinalados pela lei para permitir que se oculte alguém sob a máscara da pessoa jurídica e desfrute de seus inegáveis benefícios. Acredita-se ter sido encontrado pelos autores e pela jurisprudência o remédio para esses desvios no uso da pessoa jurídica na possibilidade de prescindir da sua estrutura formal para nela ‘penetrar’ até descobrir seu substrato pessoal e patrimonial, pondo assim a descoberto os verdadeiros propósitos dos que se amparam sob aquela armadura legal".

Frente à sentença acima, é possível elencar algumas das principais questões referentes à teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica a serem analisadas ao longo do presente trabalho. Dentre elas, destacam-se: a violação ao princípio da autonomia patrimonial, a necessidade de preenchimento de todos os requisitos constantes no art. 50 do CC e a aplicação da desconsideração inversa apesar da ausência de dispositivo legal.

3. Doutrina

Na doutrina pátria a principal voz acerca do assunto pertence a Fábio Ulhôa Coelho,

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responsável por cunhar a seguinte definição: "(...) desconsideração inversa é o afastamento do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio".4

Importante destacar também a contribuição de Fábio Konder Comparato na aplicação desse instituto:

"Aliás, essa desconsideração da personalidade jurídica não atua apenas no sentido da responsabilidade do controlador por dívidas da sociedade controlada, mas também em sentido inverso, ou seja, no da responsabili-dade desta última por atos de seu controlador.

"A jurisprudência americana, por exemplo, já firmou o princípio de que os contratos celebrados pelo sócio único, ou pelo acionista largamente majoritário, em benefício da companhia, mesmo quando não foi a sociedade formalmente parte no negócio, obrigam o patrimônio social, uma vez demonstrada a confusão patrimonial de facto."5Entretanto, coube à jurisprudência nacional o papel de revelar a aplicação da referida teoria, tal qual ocorreu com a ascensão da teoria da desconsideração da pessoa jurídica, brotada em Países anglo-saxões adeptos da Common Law.6

4. Posição no ordenamento jurídico brasileiro

Tratando-se do afastamento da personalidade jurídica, este se processa através da verificação de abuso na sua utilização, nos moldes do já aludido art. 50. Justifica-se tal premissa pelo desvirtuamento da função social da pessoa jurídica, visto que passa a servir aos interesses ilícitos praticados por seus sócios de forma particular, em nítido desacordo com preceitos dispostos no art. 5º, XIII e XXIII, e no art. 170, caput e inciso III, da Lei Maior, cujo objetivo consiste em assegurar a proteção ao patrimônio da pessoa jurídica, através da livre iniciativa:

"Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...); XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; (...); XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; (...)".

"Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...); III - função social da propriedade; (...)."

4. 1 Ausência de previsão legal

A ausência de previsão legal desse instituto poderia constituir um óbice frente à crescente incidência de tal prática e da sua aceitação pela doutrina e pelos tribunais. Tal problema vem sendo contornado pela aplicação teleológica do art. 50 do CC de 2002: "Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica".

A incidência do art. 50 é claramente justificável, visto que os requisitos característicos à desconsideração da personalidade jurídica - desvio de personalidade ou confu-

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são patrimonial - são também condição sine qua non para configurar a desconsideração da personalidade jurídica inversa.

4. 2 REsp 948 117

Eis um artifício cuja aplicação pioneira ocorreu no julgamento do REsp 948.117, de 3.8.2010, que figura como leading case do STJ no que concerne à desconsideração às avessas. Tendo como Relatora a Min. Nancy Andrighi, o recurso representa um dos principais instrumentos utilizados nas decisões analisadas que aceitam a incidência da teoria da desconsideração inversa a fim de garantir a proteção da personalidade jurídica.

O caso analisado pelo STJ nesse recurso especial remete a uma execução de título extrajudicial cobrada de um empresário. Constatou-se em primeira instância a viabilidade da aplicação da desconsideração inversa pelo fato de o requerido declarar em nome da empresa um automóvel utilizado constantemente para fins particulares e cujo valor superava o próprio patrimônio da sociedade, numa clara demonstração de abuso por parte do sócio, ao se aproveitar da autonomia patrimonial e ocultar bens próprios em meio ao patrimônio social. Em seguida interpôs o réu agravo de instrumento, que foi desprovido pelo...

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