A desconstrução da condição humana nos escritos de Bartomolé de Las Casas

AutorFlávio Couto Bernardes - Pedro Augusto Costa Gontijo
CargoDoutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais - Doutorando em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo
Páginas241-282
A desconstrução da condição humana nos
escritos de Bartomolé de Las Casas
The deconstruction of human condition in the writings of
Bartolomé d e Las Casas
Flávio Couto Bernardes*
Pontifícia Universidade Católica, Belo Horizonte – MG, Brasil
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte – MG, Brasil
Pedro Augusto Costa Gontijo**
Pontifícia Universidade Católica, Belo Horizonte – MG, Brasil
1. Introdução
A compreensão de que o presente não é obra do acaso, de mera cadeia de
causalidades, é fenômeno estudado há muito na filosofia e na epistemo-
logia da história. Investigar o presente como o ponto de confluência entre
o processo de formação da consciência histórica – sob o viés da tradição
– e a articulação de expectativas em relação às inúmeras possibilidades do
futuro somente pode se tornar uma tarefa a ser desenvolvida com rigor
científico e metodológico a partir do momento em que colocamos o ser
em face da sua história. Como bem destaca Tzvetan Todorov, poder-se-ia
realizar tal intento em duas perspectivas: uma narrativa, ou mitológica, ou
em uma argumentação lógica. A história da invasão dos territórios da Ín-
*Doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor adjunto
de Direito Financeiro e Tributário da UFMG. Professor de Direito Financeiro e Tributário e do
mestrado e doutorado da PUC-MG. Advogado. Procurador do Município de Belo Horizonte.
E-mail: flavio.bernardes@bernardesadvogados.adv.br. Orcid: 0000-0001-8180-0218
**Doutorando em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo. Mestre em Filosofia do
Direito, Legística, Teoria dos Sistemas, Direito Constitucional e Direito Internacional pela Uni-
versidade Federal de Minas Gerais. Pesquisador vinculado ao Observatório para qualidade da
lei. Professor substituto de Introdução ao Estudo do Direito e Direito Empresarial da PUC-MG.
E-mail: pedro-acg@hotmail.com. Orcid: 0000-0002-6977-3947
Direito, Estado e Sociedade n.59 p. 241 a 282 jul/dez 2021
242
Direito, Estado e Sociedade n. 59 jul/dez 2021
dias pelos espanhóis, por exemplo, é relatada por Todorov a partir de uma
narrativa mais mitológica do que uma argumentação lógica-científica, pois,
como afirma o autor, “meu interesse principal é mais o de um moralista do
que o de um historiador, o presente me importa mais que o passado”1. O
intuito do presente trabalho, por sua vez, é resgatar a formação ontológica
da ideia de ser humano no início da história latino-americana, abordando
o pensamento de Bartolomé de Las Casas e seus embates e projetos teó-
ricos quando da expansão da Conquista2, bem como seus reflexos para a
expansão do campo da compreensão da condição humana. A partir disso,
observa-se as reverberações de seus escritos à constituição e sedimentação
das bases deontológicas sobre a ideia de justiça para os latino-americanos,
e posteriormente o próprio conceito de Constituição3.
Com o intuito de realizar o estudo sobre a desarticulação da com-
preensão do ser no processo de colonização hispânica nos atuais territórios
americanos, parte-se para uma avaliação fenomênico-ontológica sobre a
correlação existente entre o ser e a tradição, e , ao mesmo tempo, entre o
ente e aquilo que pode se projetar como universal, como essência, como
ser. Trata-se da verificação de como o ser, esse ponto mais abrangente,
universal, se relaciona e leva sentido ao ente, esse ponto mais específico da
compreensão do existir humano. Por sua vez, a contraposição da relação
dos entes entre si deságua na análise do eu com o outro, ou alteridade, que
tão bem foi explorada na vasta obra de Bartolomé de Las Casas.
O processo de desmoronamento gradual da ideia de “ser” com a obli-
teração realizada pelos “entes” espanhóis sobre os “entes” indígenas revela
a existência de uma visão que diminui o diferente, que estabelece uma
relação de precedência que efetivamente descaracteriza a própria essência
do ser. Assim, poder-se-ia perguntar: o que diferenciaria substancialmente,
no plano do ser, os seres humanos europeus e os seres humanos indígenas?
1 TODOROV, 2010, p. 4.
2 Pontua Enrique Dussel que a Conquista “é um processo militar, prático, violento, que inclui
dialeticamente o Outro como o Indiferente. O Outro, em sua distinção, é negado como Outro
e é obrigado, submetido, alienado a incorporar-se à Totalidade dominadora como coisa, como
instrumento, como oprimido, como “encomendado” (DUSSEL, 1994, p. 41).
3 Salienta Lewis Hanke a proficuidade da obra de Las Casas, sendo a principal fonte para recons-
truir o referido período histórico. Apesar de não ser unanimidade, e suas posições serem contro-
versas para seus principais antagônicos em sua época e hoje, os escritos de Las Casas certamente
revelam uma mensagem para além da simples teorização (HANKE, 1967, pp. 7-9 e 19-20), acerca
da necessidade de se bem converter os indígenas, vertendo-se em uma mensagem sobre a própria
essência humana. Sobre o constitucionalismo, ver: WOLKMER, 2005; SILVA, 2014.
Flávio Couto Bernardes
Pedro Augusto Costa Gontijo
243
Direito, Estado e Sociedade n. 59 jul/dez 2021
Essa é a realidade de inúmeros momentos históricos da compreensão
ontológica do ser, especialmente na virada para a denominada modernida-
de, no final do Século XV4. Pode-se interpretar, a partir da demonstração
de Bartolomé de las Casas, por exemplo, em sua obra “Brevíssima relação
da destruição das Índias”, quando esteve na Nicarágua em 15225, que o
projeto colonial ibérico, especificamente o espanhol, consistia na descons-
trução dos três níveis elementares da dimensão do humano6, identificados
por Hannah Arendt, no contexto do século XX, para conceituar o que
seria a condição humana7: o trabalho, como aquilo que traz a subsistência
humana; a obra, como aquilo que referencia ontologicamente o tempo e o
espaço humano em uma estrutura concreta de reconhecimento/proteção;
e a ação, que é excelência do homem como ser político8. A invasão cristã-
4 Como bem destacam: TODOROV, 2010, p. 7; DUSSEL, 1994.
5 Descreve Las Casas que no ano de 1522 os espanhóis passaram “a subjugar a felicíssima pro-
víncia da Nicarágua, o que a fez entrar em um triste momento de sua história”. Nessa província,
os povos eram felizes, sãos, amenos e prósperos. Com a implantação do sistema de repartimiento
e de encomienda, os colonizadores submeteram essa gente a trabalhos forçados, para muito além
de suas condições físicas. Retiravam-nos de suas comunidades e os transportavam para outros
reinos e povos das índias, desarticulando seus referenciais culturais e ontológicos. “E quando
alguns se cansavam e se livravam das grandes cargas e adoeciam de fome e trabalho e fraqueza,
por não darem conta de se livrarem das correntes, os cortavam a cabeça, que caía para um cabo,
e o corpo para o outro” (LAS CASAS, 1997a, pp. 57-59. Tradução livre).
6 O que também é deontologicamente referenciado na proposição XXVIII, de seu “Quarto
Tratado”, conhecido como “Treinta proposiciones muy jurídicas”, onde demonstra que o sistema
de repartimiento e de encomienda, em verdade, somente serviu para o extermínio da organização
política, espacial e de autossubsistência dos nativos (LAS CASAS, 1997a, pp. 491-493).
7 LAS CASAS, 1997a, pp. 57-63; ARENDT, 2010.
8 O trato dessa obra de Hannah Arendt como fio condutor da análise de parte dos escritos de
Las Casas será realizado no presente trabalho a levar em consideração o distanciamento dos
autores e uma sempre possível interpretação anacrônica, à primeira vista, como ocorre em aná-
lises deste tipo. Contudo, numa perspectiva mais detida e próxima, está-se diante de fenômenos
parecidos. A realidade de Hannah Arendt, para engendrar a ideia sobre a “condição humana” é a
dos Estados totalitários. Realizando um paralelo, Tzvetan Todorov chama a comparação dessas
ideias de sacrifício humano e de massacre humano – ocorridas no século XVI, e replicadas de
forma inimaginável no século XX – de massacrifício: Como nas primeiras (sacrifício), professa-se
uma religião de Estado; como nas últimas (massacre), o comportamento está fundamentado no
princípio kamarazoviano do ‘tudo é permitido’. Como no sacrifício, mata-se inicialmente em
casa; como no caso dos massacres, oculta-se e nega-se a existência dessas matanças. Como lá,
as vítimas são escolhidas individualmente; como aqui, são exterminadas sem nenhuma ideia de
ritual. O terceiro termo existe, mas é pior que os dois precedentes; o que fazer?” (TODOROV,
2010, p. 369). Não é necessário ir muito longe para verificar que o estranhamento do outro,
a apatia em relação à alteridade, levou a lógica do massacre ocorrido na invasão da “América
espanhola” a também ser constatada no nível dos totalitarismos do século XX (TODOROV,
2010, pp. 368-369), com as devidas proporções e fundamentos “ideológicos”. Essa é a marca
da Condição Humana de Hannah Arendt (2010).
A desconstrução da condição humana nos escritos de Bartomolé de Las Casas

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT