Desenvolvimento Histórico do Juízo Arbitral

AutorLuiz Antunes Caetano
Páginas41-57

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Afirma ADOLF SCHÖNKE, ilustre professor de Freiburg (Breisgau), prematuramente desaparecido para as letras jurídicas da Alemanha, que, em verdade, seja no desenvolvimento da comunidade social dos indivíduos, como dos povos - vejam-se os tratados de arbitragem do Direito das Gentes -, regra é que a transição da defesa privada para o procedimento judicial se faz pelo compromisso arbitral.1Em abono de tal opinião, aponta-nos que WLASSAK situava no juízo arbitral a própria origem do processo civil romano.2Como acentua STRUPP, inegável é que o juízo arbitral constitui uma etapa preliminar que antecede um procedimento judicial ordenado pelo Estado, cumprindo salientar que assim aconteceu em todos os povos indogermânicos.3Apoiando-se em MENTHON4, desenvolve o professor DANTE BARRIOS DE ANGELIS, da Faculdade de Direito e de Ciências Sociais da Universidade de Montevidéu, uma perspectiva histórica, em lar-

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gos traços esboçada: constituiu a vingança privada a gênese do processo hodierno, mas, para que desde aquela primeira etapa, vingança, justiça privada, envolvessem os homens, até chegar ao processo jurisdicional, diversos estágios tiveram de ser, necessariamente, percorridos, e uma dessas etapas fundamentais ("etapas-madres", diz o autor uruguaio) é a arbitragem, fase intermediária no itinerário que parte da vingança até o procedimento judicial.

Avança o catedrático de Montevidéu que, provavelmente, na Idade da Pedra, apenas teriam tido solução coercitiva, lograda pelas próprias mãos, as disputas, decididas por aguerridos embates de indivíduos ou de grupos. Por vezes, todavia, antes que os contendores viessem a enveredar por esse caminho de buscar justiça pelas próprias mãos, pode ter aparecido um terceiro em cena, cuja intervenção terá podido sobrestar o conflito iminente ou mesmo em curso e sugerir uma solução para o litígio, a qual as partes em divergência poderiam aceitar ou não. Na primeira hipótese teria tido origem um acerto, o qual não resultaria, por si só, dos contendores, dada a invenção do terceiro.

Tal procedimento, em que as partes não se enfrentam diretamente e no qual existe a intervenção de um terceiro, mas em que a decisão definitiva fica a depender da vontade última das partes, é o que se chama de mediação. A decisão é tomada pelas próprias partes, mesmo que interceda sugestão do terceiro mediador: primeiramente as partes acordam em não continuar ou em não iniciar seu combate e, a seguir, em escutar as sugestões do terceiro. Por si mesmas é que as partes poderão resolver aceitar a solução lembrada pelo terceiro: resolução que, em sua totalidade, se corporifica mediante acordo.

Com o desenrolar dos tempos, por motivos de ordem histórica, religiosa, etc., tão grande prestígio pode haver adquirido esse terceiro mediador que os futuros combatentes se sentiram, de logo, induzidos a procurá-lo, para lhe pedir seu conselho, antes de se aventurarem a confiar ao combate a sorte de seu conflito.

Nesse momento, de modo virtual, teremos arbitragem, a qual existirá, desde que os conflitos sejam:

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  1. submetidos, por acordo comum dos interessados, a um terceiro, e que, além disso,

  2. tal submissão pressuponha futura obediência à decisão desse terceiro.

Não teremos, então, mais a hipótese dos combatentes que aceitam determinada opinião, se esta lhes parecer boa, mas, ao contrário, um caso em que, de antemão, eles acatarão a resolução futura do terceiro. Aqui, por essa forma rudimentar, se manifesta a maioria dos atributos da arbitragem atual.5Para FRANCES KELLOR, é a arbitragem um dos mais vetustos entre os processos dos quais se há servido a humanidade em sua perquirição da paz e da justiça, e muito antes que se estabelecessem leis e que tribunais fossem organizados, ou que juízes houvessem formulado princípios de direito, já os homens recorriam à arbitragem para terminar discórdias, acertar diferenças e compor suas controvérsias.6Em DALLOZ, podem-se ver textos que documentam haverem recorrido à arbitragem povos como os hebreus, os hindus, os atenienses, os espartanos.7 Lembra FRANCES KELLOR que a arbitragem comercial era conhecida dos caravaneiros do deserto ao tempo de Marco Polo e que também havia sido uma prática freqüente entre os mercadores fenícios e gregos.8Na verdade, quando da infância das sociedades humanas, quando as partes não podiam, por si mesmas, chegar a um entendimento, as divergências em geral tiveram que ser submetidas à decisão de vizinhos, de parentes e de amigos comuns, e tão natural é este sentimento que, sempre que uma contestação se originar entre duas pessoas na presença de um terceiro, este último é logo tomado para mediador, para árbitro. Cada uma das pessoas dirige-lhe a palavra e procura convencê-lo de seu bom direito.9

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3.1. O juízo arbitral no direito romano

Proclama EGIDIO CODOVILLA que o instituto moderno do compromisso traz a inspiração do Digesto, o qual, no Livro IV, título 8, disciplinava a matéria. Duas convenções concorriam no instituto romano: o compromissum, mediante o qual as partes deferiam a controvérsia ao árbitro ou aos árbitros, e o receptum arbitri, que era o ato que se formava entre as partes, de um lado, e o árbitro ou árbitros, do outro lado, mediante o qual este ou estes aceitavam a função. O árbitro, que houvesse aceito a incumbência, era chamado de is qui in se receperit arbitrium (D. 4, 8, 3, 1 e D. 4, 8, 13, 2).10Diferenciava-se compromissum, que era negócio consensual, do instituto do arbiter iuris ou arbiter legalis do procedimento clássico, porquanto o arbiter iuris não era nomeado pelas partes, mas pelo Pretor, posto que à instância delas, nas actiones bonae fidae e nas actiones arbitrariae, para que julgasse a controvérsia, segundo a justiça e a eqüidade.11O compromissum, no sistema romano, era um dos modos de pôr termo às contestações jurídicas. Constituindo ele, porém, apenas um simples pacto, as obrigações, a que ele dava origem, ficavam no estado puramente natural, a menos que as partes lhe dessem uma força civilmente obrigatória, como imprimirem à convenção o caráter de contrato, para o que bastaria, por exemplo, revesti-la da forma de stipulatio, hipótese em que o promitente se tornava passível de uma condictio incerti para execução do compromisso. Esse método era, porém, pouco usado, por motivo do caráter vago e impreciso da prestação.12De mais freqüente emprego era recorrerem as partes a um meio indireto, que consistia em convencionar uma pena - stipulatio poenae - em que cada uma das partes se obrigava a pagar no caso de

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não cumprir as obrigações resultantes do compromisso. Dado que essa pena consistisse, ordinariamente, em uma soma em dinheiro, pecunia certa, ela podia ser perquirida por meio de uma condictio certi. Fosse a soma estipulada como penalidade suficientemente alta, resultaria de tanto uma garantia eficaz.

Justiniano, porém, julgou útil instituir um meio direto da execução para o caso em que existisse sentença validamente proferida em conseqüência de compromisso e promulgou duas Constituições, mercê das quais a parte vencedora podia obter, por meio de uma in factum actio ou de uma condictio ex lege, a execução do julgado arbitral, se o mesmo estivesse subscrito por ambas as partes ou se não fosse contestado dentro de dez dias depois de proferido.13Tinha, assim, por essa Constituição do ano de 529 (C. 2, 56, 4), o Imperador Justiniano atribuído eficácia excepcional ao compromisso formado e aceito sob juramento pelas partes e pelo árbitro, tanto que a sentença, que viesse a ser proferida, por efeito de tal compromisso, era obrigatória para as partes. Tantos abusos e escândalos acarretou o sistema assim instituído - pois o juramento havia-se tornado um meio de vincular uma parte à sentença de árbitros ignorantes e corruptos, quiçá -, que o próprio Justiniano terminou por proibir o compromissum sob juramento e retornou, pela Novela 82, no ano de 539, ao sistema primitivo, estabelecendo que de futuro tão-somente uma pena poderia ser estipulada para a hipótese de não quererem as partes dar cumprimento à decisão arbitral.14Durante o Baixo Império se desenvolvera bastante a prática de referir controvérsias à decisão arbitral dos bispos, uso que se formara, de há muito tempo, entre os adeptos do cristianismo. Chegou mesmo o Imperador Constantino a reconhecer verdadeira jurisdição aos bispos, ao permitir, a requerimento de qualquer dos litigantes, no decorrer da pendência, fosse a controvérsia referida ao bispo, cuja decisão teria também força executória. No fim do século IV ou nos princípios do século V foi ab-rogada essa reforma de Constanti-

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no, passando o bispo a ser investido nas funções de árbitro apenas em virtude de um compromisso, por acordo comum dos litigantes.15Assinala ARIAS RAMOS o marcado caráter arbitral do procedimento civil antigo e clássico de Roma, no sentido de que o Estado não decidia o litígio, mas se limitava a coordenar a tramitação e a dar, posteriormente, o apoio de seu poderio à sentença pronunciada pelo iudex.16O doutor LEOPOLD WERGER, ilustre romanista da Universidade de Munique, afirma que na evolução do processo civil romano o princípio da arbitragem desempenhou um papel muito importante e, talvez, decisivo, embora tal forma de resolver litígios, encontrada em todos os povos e em todas as épocas, não constitua uma característica dos romanos.17

3.2. O juízo arbitral na Idade Média até a Revolução Francesa

No decorrer da Idade Média, o localismo jurídico, decorrente da desagregação do Império Romano, da formação dispersiva dos domínios territoriais, mais ou menos amplos, onde os senhores feudais (em fase absolutista)...

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