Desenvolvimento e multiculturalismo: uma análise da política de cotas no cenário brasileiro

AutorFelipe Franz Wienke
Páginas77-94
Felipe Franz Wienke
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Revista Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 5, n. 10, p. 77-94, jul./dez. 2014
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Reconhecer a diversidade encontrada em diferentes culturas é muito importante no
mundo contemporâneo. Nossa compreensão da presença da diversidade tende a ser um
tanto prejudicada por um constante bombardeio de generalizações excessivamente
simplificadas sobre a “civilização ocidental”, os “valores asiáticos”, as “culturas
africanas”, etc. [...]
A discussão ocidental sobre as sociedades não ocidentais com frequência acata
excessivamente a autoridade. [...] Uma abordagem adequada de desenvolvimento não
pode realmente concentrar-se tanto apenas nos detentores do poder. (Ibid., 316-317).
O exercício da liberdade é mediado por valores que são influenciados por discussões
públicas e interações sociais, que são, elas próprias, influenciadas pelas liberdades de
participação. Nessa esteira, diferenças simbólicas não podem constituir óbices à participação e
à igualdade de oportunidades sociais.
Parte-se do pressuposto de que a exclusão social, a qual tem origem também na falta
de reconhecimento de algumas identidades culturais excluídas, “destrói a imparcialidade da
lei, causando a invisibilidade dos extremamente pobres, a demonização daqueles que
desafiam o sistema e a imunidade dos privilegiados, aos olhos do indivíduo e das instituições”
(VIEIRA, 2011, p. 207). Corroborando esta visão, cabe destacar publicação do Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento, o qual destaca que:
O desenvolvimento humano tem como fundamento a remoção dos obstáculos que
restringem as escolhas dos indivíduos obstáculos socioeconômicos, como pobreza e
analfabetismo, ou institucionais, como censura e repressão política. O Brasil convive,
séculos, com uma barreira que trava o desenvolvimento humano de parte
significativa de sua população: o racismo, que se apresenta como um obstáculo de
caráter tanto institucional (por meio de políticas que ignoram a população negra e
indígena) quanto socioeconômico (por meio da desigualdade social que segrega parte
da população nas áreas mais pobres do país) (PNUD, 2005, 14).
No próximo capítulo pretende-se avançar na análise das políticas públicas de combate
ao racismo, buscando inter-relacioná-las com o tema do desenvolvimento, a partir da ótica
aqui desenvolvida.
3 POLÍTICA DE COMBATE À DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO BRASIL: DAS
PRERROGATIVAS CONSTITUCIONAIS À APRECIAÇÃO PELO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL
No capítulo anterior buscou-se demonstrar que a nacionalização da cultura esconde
um quadro amplo de heterogeneidade cultural, desvalorizando os formatos que não se
adaptam à proposta hegemônica. Nesse contexto, a partir na obra de Nancy Fraser, defendeu-
se a necessidade de remédios de reconhecimento para desigualdades de ordem simbólica e
cultural. Explanou-se, ainda, a concepção de que existe uma relação direta entre
desenvolvimento e respeito à diversidade cultural, de modo que a garantia da tolerância
dentro de uma sociedade notoriamente multicultural é essencial para a dignidade humana.
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O Estado brasileiro adotou políticas públicas de tentativa de combate à intolerância e
à discriminação. No presente capítulo, apresenta-se o arcabouço legal vigente no país de
promoção da igualdade racial, bem como o conceito de política afirmativa positivado no país.
Propõe-se, ainda, a análise da política de cotas adotada por universidades públicas para a
seleção de estudantes, notoriamente o caso da Universidade de Brasília (UnB), pioneira na
adoção deste tipo de metodologia.
No ponto final, propõe-se um estudo sobre o julgamento da Arguição Direta de
Preceito Constitucional nº 186, na qual o Supremo Tribunal Federal se debruçou sobre a
questão da constitucionalidade da política de cotas da UnB.
3.1 DA BUSCA DA TOLERÂNCIA E DO RECONHECIMENTO CULTURAL NO
CENÁRIO POLÍTICO BRASILEIRO
O constitucionalismo brasileiro, inaugurado com a promulgação da Constituição
Federal de 1988, mostrou uma preocupação com a problemática cultural não vista até então.
O fim de preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (art. 3º). De
modo semelhante, o texto constitucional estabelece que o Brasil, em suas relações
internacionais, terá como princípio o repúdio ao racismo.
Além do mais, a Constituição, em seção específica sobre a cultura, ratificou a
preocupação com a promoção do respeito e da tolerância com a diversidade cultural (título
VII, capítulo III, seção II). O artigo 215 estabeleceu que o “Estado garantirá a todos o pleno
exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará a valorização
e a difusão das manifestações culturais”. Dispôs ainda que o Plano Nacional de Cultura, de
duração plurianual, conduzirá a valoração da diversidade étnica e regional (art. 215, § 3º, V),
o que também foi estabelecido pelo artigo 216-A, o qual estabeleceu que o sistema Nacional
da Cultura se regerá, dentre outros, pelo princípio da diversidade das expressões culturais (art.
216-A, § 1º, I).
Em suma, percebe-se que a Constituição Federal buscou afastar a ideia de uma
identidade nacional homogênea, positivando a importância de todas as culturas para o
desenvolvimento. Tais princípios embasaram uma série de políticas públicas, bem como a
criação, através de medida provisória nº 111, de 21 e março de 20032, da Secretaria Especial
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), que recebeu status de ministério.
2 A medida provisória foi posteriormente convertida na lei 10.678, de 23 de março de 2003.

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