O desequilíbrio econômico-financeiro nos contratos após o Código Civil de 2002

AutorMilton Nassau Ribeiro
Páginas49-65

Page 49

1. Introdução

O tema do desequilíbrio econômico--financeiro dos contratos não é novo, tampouco pacífico. Não se pode negar, contudo, que, na vigência do Código Civil de 1916, algumas questões tormentosas que o circundavam foram assentadas na doutrina e na jurisprudência. A chegada do Código Civil de 2002, porém, tornou o assunto novamente objeto de polêmicas. A nova legislação civil trouxe artigos expressos sobre hipóteses de desequilíbrio no Direito das Obrigações e suas consequências, bem como, de forma mais relevante, referências a princípios que favorecem a busca da "ética da situação",1 especialmente a boa-fé objetiva e a função social do contrato.

Em razão dessa mudança legislativa, o objetivo deste trabalho é verificar o tratamento dado pelo Código Civil de 2002 à questão do desequilíbrio econômico-finan-ceiro dos contratos. Para atingir tal fim, será necessário fazer um breve histórico do tema e, ato contínuo, abordar superficialmente as principais teorias que tentam explicar o fenômeno do desequilíbrio contratual. Vencidas essas etapas, finalmente serão analisados os artigos do Código Civil de 2002 que se relacionam ao desequilíbrio econômico-financeiro dos contratos e dos eventuais impactos que a positivação dos princípios da boa-fé objetiva e da função social dos contratos trouxe à discussão dessa problemática.

2. Desequilíbrio contratual antes do Código Civil de 2002

O Direito das Obrigações está em constante evolução. Recentemente, solidificou-se a ideia de obrigação como processo2 de substituição do tradicional princípio da autonomia da vontade pela autonomia privada, bem como o reconhecimento do dever das partes de agir com boa-fé, no seu sentido objetivo, observando-se os deveres instrumentais (ou colaterais) de proteção,

Page 50

informação e lealdade.3 Convém lembrar, porém, que, antes mesmo da consolidação dessas ideias, a comutatividade e o equilíbrio entre as prestações já figuravam entre os princípios basilares do Direito das Obrigações.

Especialmente após as duas guerras mundiais, as relações sociais e contratuais tornaram-se menos estáveis. Essa transformação levou a uma relativização do princípio da autovinculação (pacta sunt ser-vanda)4 por parte da doutrina e da jurisprudência, privilegiando a ideia de manutenção do equilíbrio nas relações contratuais. Fórmulas inspiradas em antigos institutos jurídicos, como a cláusula rebus sic stan-tibus,5 passaram a ser utilizadas, tendo por finalidade a manutenção das premissas negociais acertadas no momento da celebração do contrato.

No Brasil, não foi diferente. Embora o Código de 1916 não contivesse previsões específicas para o tema,6 algumas hipóteses de revisão do contrato em desequilíbrio passaram a ser aceitas pela jurisprudência, a partir de meados do século passado.7

No que tange aos desequilíbrios ocorridos no momento da celebração do contrato, a revisão somente era aceita se presente, no caso concreto, algum defeito do ato jurídico (vícios do consentimento), especialmente quando da ocorrência das figuras do erro e do dolo.

Para os casos de desequilíbrio decorrentes de fatos ocorridos posteriormente à celebração do contrato, a jurisprudência8 passou a adotar de forma genérica a chamada "teoria da imprevisão", que será pormenorizada no item 3.

Ao longo do tempo, leis esparsas passaram a prever a possibilidade de revisão em casos específicos. Por exemplo, a Lei de Locações (Lei n. 8.245, de 1991) previu a possibilidade de revisão,9 sendo que, com o advento do Plano Real, o art. 21, § 4o, da Lei n. 9.069, de 1995,10 o desequilíbrio econômico-financeiro passou a ser hipótese expressa. Tudo indica, no entanto, que o grande responsável pela consolidação da expressão "equilíbrio econômico-financeiro" foi a Lei de Licitações (Lei n. 8.666, de

Page 51

1993),11 que, em seu art. 65, II, d, determinou a manutenção do equilíbrio nos casos em que este venha a ser abalado por fatos imprevisíveis ou previsíveis, mas de consequências incalculáveis. Uma vez que a administração pública é um grande contratador, muitos contratos foram, e ainda são, firmados sob a regência dessa lei. Por isso, tornou-se comum que negociações e pleitos de revisão contratual consagrassem aquela expressão.

Dentre as possibilidades de revisão contratual anteriores ao Código Civil de 2002, é digna de menção a previsão do art. 6o, V, do Código de Defesa do Consumidor.12 Nesse instrumento legal, permite-se tanto a modificação de cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais (desequilíbrio no momento da formação do contrato), quanto a sua revisão em caso de fatos supervenientes que as tornarem excessivamente onerosas (desequilíbrio posterior à formação do contrato).

3. Teorias acerca da revisão por desequilíbrio

A ideia de revisão contratual é, no entanto, muito anterior ao século XX. Como relata José Ricardo Pereira Lira,13 a doutri-na majoritária aponta a Idade Média como o período histórico no qual a concepção de flexibilização da força obrigatória dos contratos se assentou.

Sua origem remonta ao Direito Canônico, a partir do século XIII, notadamente em julgados dos Tribunais Eclesiásticos, atribuindo-se aos canonistas e pós-glosa-dores a gênese da expressão rebus sic stan-tibus, que passou a ser cláusula geral do direito contratual, no que se refere aos contratos de trato sucessivo. Existem, porém, aqueles que afirmam ser essa cláusula já existente no Direito Romano,14 sem haver consenso quanto a esse fato.

A concepção medieval da rebus sic stantibus perdeu força nos séculos XVII e XVIII. Muito embora acolhida pelo Direito Canônico, sua base era contrária ao liberalismo vigente à época. Como consequência, a sua previsão se fez ausente nas codificações que afloraram a partir do século XIX. Nesse período, somente eram admitidas rupturas dos pactos em razão de caso fortuito ou de força maior.15

No século XX, por outro lado, a revisão contratual por fato superveniente voltou a ganhar força, especialmente após as duas Grandes Guerras, que acarretaram a impossibilidade de cumprimento de contratos administrativos, desvalorizações monetárias e escassez de mercadorias. Desde a Primeira Grande Guerra, leis transitórias surgiram, estimulando a flexibilização ou mesmo a exoneração do princípio do pacta sunt servanda.

O acolhimento do revisionismo contratual não se deu, contudo, de maneira

Page 52

uniforme. Enquanto alguns países preveem a possibilidade de revisão por norma expressa,16 outros apenas a admitem por meio de interpretação dos tribunais.17

Várias teorias foram desenvolvidas para tentar explicar o fenômeno do desequilíbrio contratual por fato superveniente à celebração do contrato. César Fiúza, que acredita ser a teoria da imprevisão um gênero do qual as outras teorias revisionistas são meras espécies, ressalta as semelhanças entre as teses derivadas da cláusula re-bus sic stantibus: "Os modernos procuraram adaptar essa tese aos tempos atuais, daí surgindo várias teorias. Ao que tudo indica, a doutrina é muito confusa a respeito, a maioria dessas teorias tem em comum a imprevisibilidade de certo evento, que vem destruir o equilíbrio do contrato, após sua celebração e antes ou durante a sua execução".18

Neste trabalho, serão analisadas as mais destacadas teorias: a da imprevisão (francesa); a da base objetiva do negócio (alemã) e a da onerosidade excessiva (italiana).

3. 1 Teoria da imprevisão

A teoria da imprevisão, de origem francesa, é mais citada dentre aquelas que buscam explicar o fenômeno da revisão contratual motivada por fato superveniente. Isso não deixa de ser paradoxal, pois o direito francês foi pioneiro na defesa intransigente da tese de que o contrato deve ser considerado lei entre as partes. Essa posição foi positivada no art. 1.134 do Código Napoleônico de 1804, em expressa oposição à possibilidade de revisão contratual.

Apesar disso, algumas decisões que rompiam com as ideias do Código Napoleô-nico passaram a surgir na França. Assim, em 28 de agosto de 1843, o Tribunal de Comércio de Rouen determinou a resolução de um contrato de transporte rodoviário entre Paris e Rouen. O motivo foi a instalação de uma linha férrea entre aquelas cidades, o que acabou por tornar desinte-ressante a exploração comercial que pretendia o contrato.

A esse caso, seguiram-se: (i) o do Canal de Cramprone, no ano de 1876, em que se decidiu rever a quantia referente aos benefícios advindos do canal, uma vez que, após 300 anos de operação, aquele valor se tornou defasado; (ii) a decisão do Tribunal do Comércio de Toulouse, admitindo a extinção de um contrato, em razão da impossibilidade econômica de seu cumprimento, devido à Primeira Guerra Mundial.

Note-se, contudo, que todas essas decisões se basearam no argumento da força maior, e não na imprevisão. Por isso, o marco na ruptura da rigidez contratual ocorreu em 30 de março de 1916, em um caso cujas partes eram a Prefeitura de Bor-deaux e a concessionária de energia daquela cidade (Compagnie Générale d'Éclai-rage).

Em virtude da Primeira Guerra Mundial, o preço do carvão, indispensável para a produção de gás de iluminação, duplicou em 1915 e quintuplicou no fim daquele mesmo ano, gerando uma situação de evidente desequilíbrio no contrato de concessão celebrado entre a Municipalidade e aquela companhia pelo prazo de 30 anos.

Diante de tais fatos, o...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT