Do desespero à esperança: Um comentário crítico à Medida Cautelar no Mandado de Segurança nº 27.931-1 sobre o destrancamento da pauta em relação aos projetos de lei complementar e aos de emendas constitucionais

AutorSiddharta Legale Ferreira
Páginas68-82

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Decisão do Min. Celso de Mello: 1

Trata-se de mandado de segurança preventivo, com pedido de liminar, impetrado por ilustres membros do Congresso Nacional contra decisão do Senhor Presidente da Câmara dos Deputados que “(...) formalizou, perante o Plenário da Câmara dos Deputados, seu entendimento no sentido de que o sobrestamento das deliberações legislativas – previsto no § 6º do art. 62 da Constituição Federal – só se aplicaria, supostamente, aos projetos de lei ordinária” (fls. 03/04 - grifei). (...) O Senhor Presidente da Câmara dos Deputados, ao proferir a decisão em referência, assim fundamentou, em seus aspectos essenciais, o entendimento ora questionado (fls. 46/48): “(...) quero dizer - já faço uma síntese preliminar – que, além das resoluções, que podem ser votadas apesar do trancamento da pauta por uma medida provisória, também assim pode ocorrer com as emendas à Constituição, com a lei complementar, com os decretos legislativos e, naturalmente, com as resoluções. Dou um fundamento para esta minha posição. O primeiro fundamento é de natureza meramente política. Os senhores sabem o quanto esta Casa tem sido criticada, porque praticamente paralisamos as votações em face das medidas provisórias. Basta registrar que temos hoje 10 medidas provisórias e uma décima primeira que voltou do Senado Federal, porque lá houve emenda, que trancam a pauta dos nossos trabalhos. Num critério temporal bastante otimista, essa pauta só será destrancada no meio ou no final de maio, isso se ainda não voltarem para cá outras medidas provisórias do Senado Federal, com eventuais emendas, ou, ainda, outras vierem a ser editadas de modo a trancar a pauta. Portanto, se não encontrarmos uma solução, no caso, interpretativa do texto constitucional que nos permita o destrancamento da pauta, nós vamos passar, Deputadas e Deputados, praticamente esse ano sem conseguir levar adiante as propostas que tramitam por esta Casa que não sejam as medidas provisórias. (,,,)

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Fechada a explicação de natureza política, eu quero dar uma explicação de natureza jurídica que me leva a esse destrancamento. (...) Para dizer uma obviedade, Executivo executa, Legislativo legisla e Judiciário julga. Portanto, a função primacial, primeira, típica, identificadora de cada um dos poderes é esta: execução, legislação e jurisdição.

No caso do Legislativo, essa atividade foi entregue ao órgão do poder chamado Poder Legislativo. Pode haver exceção a esse princípio? Digo eu: pode e há. Tanto que, em matéria legislativa, o Poder Executivo, por meio do Presidente da República, pode editar medidas provisórias com força de lei, na expressão constitucional. É uma exceção ao princípio segundo o qual ao Legislativo incumbe legislar.

Então, volto a dizer: toda vez que há uma exceção, esta interpretação não pode ser ampliativa. Ao contrário. A interpretação é restritiva. Toda e qualquer exceção retirante de uma parcela de poder de um dos órgãos de Governo, de um dos órgãos de poder, para outro órgão de Governo, só pode ser interpretada restritivamente. Muito bem. Então, registrado que há uma exceção, nós vamos ao art. 62 e lá verificamos o seguinte: que a medida provisória, se não examinada no prazo de 45 dias, sobresta todas as demais deliberações legislativas na Casa em que estiver tramitando a medida provisória. (,,.)

Mas, aí, surge uma pergunta: de que deliberação legislativa está tratando o texto constitucional? E eu, aqui, faço mais uma consideração genérica. A interpretação mais prestante na ordem jurídica do texto constitucional é a interpretação sistêmica. Quer dizer, eu só consigo desvendar os segredos de um dispositivo constitucional se eu encaixá-lo no sistema. É o sistema que me permite a interpretação correta do texto. A interpretação literal - para usar um vocábulo mais forte - é a mais pedestre das interpretações. Então, se eu ficar na interpretação literal, ‘todas as deliberações legislativas’, eu digo, nenhuma delas pode ser objeto de apreciação. Mas não é isso o que diz o texto. Eu pergunto, e a pergunta é importante: uma medida provisória pode versar sobre matéria de lei complementar? Não pode. Há uma vedação expressa no texto constitucional. A medida provisória pode modificar a Constituição? Não pode. Só a emenda constitucional pode fazê-lo. A medida provisória pode tratar de uma matéria referente a decreto legislativo, por exemplo, declarar a guerra ou fazer a paz, que é objeto de decreto legislativo? Não pode. A medida provisória pode editar uma resolução sobre o Regimento Interno da Câmara ou do Senado? Não pode. Isto é matéria de decreto legislativo e de resolução. Aliás, aqui faço um parêntese: imaginem os senhores o que significa o trancamento da pauta. Se hoje estourasse um conflito entre o Brasil e um outro país, e o Presidente mandasse uma mensagem para declarar a guerra, nós não poderíamos expedir o decreto legislativo, porque a pauta está trancada até maio. Então, nós mandaríamos avisar: só a partir do dia 15 ou 20 de maio nós vamos poder apreciar esse decreto legislativo. Não é? Então, em face dessas circunstâncias, a interpretação que se dá a essa expressão ‘todas as deliberações legislativas’ são todas as deliberações legislativas ordinárias.

Trecho com os principais argumentos da decisão do Ministro Celso de Mello:

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Reconhecida, assim, a legitimidade dos ora impetrantes para agir na presente sede mandamental, passo a examinar a admissibilidade, no caso, desta ação de mandado de segurança, por entender que a decisão ora impugnada não se qualifica como ato “interna corporis”. Tenho para mim, em juízo de sumária cognição, que a presente causa revela-se suscetível de conhecimento por esta Suprema Corte, em face da existência, na espécie, de litígio constitucional – instaurado entre os ora impetrantes, em sua condição de membros do Congresso Nacional, e o Senhor Presidente da Câmara dos Deputados – referente à interpretação do § 6º do art. 62 da Constituição Federal, acrescido pela EC nº 32/2001. Esse particular aspecto da controvérsia afasta o caráter “interna corporis” do procedimento em questão, legitimando-se, desse modo, tal como tem sido reconhecido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 173/805-810, 806 – RTJ 175/253 – RTJ 176/718, v.g.), o exercício, por esta Suprema Corte, da jurisdição que lhe é inerente, em razão da natureza jurídico-constitucional do litígio em causa.

A COMPETÊNCIA EXTRAORDINÁRIA DE EDITAR MEDIDAS PROVISÓRIAS NÃO PODE LEGITIMAR PRÁTICAS DE CESARISMO GOVERNAMENTAL NEM INIBIR O EXERCÍCIO, PELO CONGRESSO NACIONAL, DE SUA FUNÇÃO PRIMÁRIA DE LEGISLAR. (...) Na realidade, a deliberação ora questionada busca reequilibrar as relações institucionais entre a Presidência da República e o Congresso Nacional, fazendo-o mediante interpretação que destaca o caráter fundamental que assume, em nossa organização política, o princípio da divisão funcional do poder, cuja essencialidade - ressaltada por ilustres doutrinadores (...)foi expressamente destacada pelo eminente Senhor Presidente da Câmara dos Deputados, que acentuou as gravíssimas conseqüências que necessariamente derivam da transgressão a esse postulado básico que rege o modelo político-institucional vigente em nosso País (fls. 48) A FÓRMULA INTERPRETATIVA ADOTADA PELO PRESIDENTE DA CÂMARA DOS DEPUTADOS: UMA REAÇÃO LEGÍTIMA AO CONTROLE HEGEMÔNICO, PELO PRESIDENTE DA REPÚBLICA, DO PODER DE AGENDA DO CONGRESSO NACIONAL?2

Comentário
I Aspectos gerais

O Executivo se agigantou. O Legislativo se recolheu e encolheu. O Judiciário não fez nada3. Por mais surpreendente que possa parecer, não estamos na ditadura ePage 71 o Brasil ainda é uma democracia, tal como previsto na Constituição de 1988. Mesmo assim, ao longo da vigência da Constituição democrática, essa tem sido a dinâmica da separação dos poderes em relação às medidas provisórias. É certo que, durante o século XX, o mundo vivenciou algum grau de transferência da iniciativa da atividade legislativa para o Executivo, enquanto o Legislativo assumiu, cada vez mais, o papel de incrementar dos mecanismos de controle e fiscalização, não raro em parceria com o Judiciário. Houve uma alteração mundial na dinâmica entre poderes4-5. O problema é que, especificamente no caso brasileiro, tal crescimento veio acompanhado de fatores patológicos e desacompanhado de mecanismos eficazes de controle.6-7.

A evolução casuística das medidas provisórias revela sem sombra de dúvida que, mesmo após a introdução de novos limites à edição de medidas provisórias pela Emenda Constitucional nº 32, a organização e desorganização dos poderes persistiram lado a lado8. Foram aprovadas tanto medidas provisórias realmente relevantes e urgentes, quanto medidas provisórias que não passavam de manifestações dos interesses momentâneos da burocracia.

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Foi nesse contexto preocupante para qualquer constitucionalista sério e comprometido com a separação de poderes, a democracia e o Estado de direito, que o Presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, realizou essa interpretação peculiar do § 6º, do art. 62, da Constituição Federal. Segundo ela, a expressão “sobrestadas todas as demais deliberações” só se aplicaria, supostamente, aos projetos de lei ordinária. Os projetos de lei complementar e os projetos de emenda constitucional poderiam ser votados, a despeito do trancamento da pauta, desencadeado pela não deliberação da medida provisória.

Embora não seja a mais adequada interpretação do ponto de vista constitucional, é impossível ignorar que ela representa uma iniciativa louvável em conter a hipertrofia do Executivo no processo legislativo. Compartilhamos, portanto, da preocupação do Presidente do...

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