A desjudicialização da execução cível em portugal

AutorPaula Costa e Silva e Paula Meira Lourenço
Páginas387-425
A DESJUDICIALIZAÇÃO
DA EXECUÇÃO CÍVEL EM PORTUGAL
Paula Costa e Silva
Professora Catedrática da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, tendo
leccionado as disciplinas de Direito das Obrigações, Teoria Geral do Direito Civil e
Direito Processual Civil. Consultora, árbitro e advogada.
Paula Meira Lourenço
Doutora em Direito (Ciências Jurídicas) pela Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa, Professora Auxiliar desta Faculdade, Membro do Instituto Português de Processo
Civil (IPPC) e do Centro de Investigação de Direito Privado da Faculdade de Direito
da Universidade de Lisboa (CIDP), Membro do Conselho Cientíco da Associação
Internacional de Agentes de Execução (Union Internationale des Huissiers de Justice),
Vogal do Conselho de Administração da ANACOM.
I. A HISTÓRIA DE UMA REFORMA
1. Os trabalhos preparatórios de 2000/2001: a identicação das causas de
morosidade na ação executiva e a recolha de contributos tendo em vista a
sua resolução
1. Na década de 90 do século XX, a morosidade processual era o grande gargalo
da justiça cível portuguesa, tendo originado um elevado número de condenações
do Estado português pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) por
violação do direito a um processo em prazo razoável, garantia do processo equitativo
consagrada no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH)1-2.
A morosidade processual inseria-se num fenómeno global complexo de aumento
exponencial da procura dos serviços de justiça cível e da pendência processual, ao
qual se assistia desde os anos 70 do século passado. Com efeito, entre 1970 e 1999 a
procura da justiça cível e as execuções cresceram cerca de dez vezes, ou seja, 1000%
1. A redação da norma legal prevista no artigo 6.º da CEDH é muito similar à de outros preceitos de textos in-
ternacionais que vinculam o Estado português, como seja, o artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, o artigo 14.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, e o artigo 47.º da Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia. O elevado número de condenações do Estado português por
morosidade processual e violação do direito a um prazo razoável enquanto garantia do processo equitativo,
prevista no artigo 6.º da CEDH, contribuiu para a opção legislativa de consagração formal, no n. 4 do artigo
20.º da Constituição da República Portuguesa, do direito a um processo equitativo em prazo razoável.
2. LOURENÇO, Paula Meira. A Reforma da Ação Executiva. In: ALBUQUERQUE, Paulo Pinto (Coord.).
Direito em Revista, n. 3, 2001, 32-33; Processo civil executivo português à luz da Convenção, Comentário
da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e dos Protocolos Adicionais, Universidade Católica Editora,
novembro, 2019, v. II, 994-1003; As garantias do processo equitativo na execução patrimonial”, Imprensa
FDUL (no prelo); FERNANDEZ, Elizabeth. Um novo Código de Processo Civil? Em busca das diferenças,
Vida Económica, Editorial S.A., 2014, 10.
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(de 23.778 em 1970 para 180.281 em 1999). Consequentemente, o sistema judicial
não conseguiu, sequer, manter o número anual de processo pendentes, o qual cresceu
cerca de vinte vezes, ou seja, 2000% (de 14.241 ações em 1970 e 365.761 em 1999)3.
E não havia alocação de recursos que conseguisse ser suf‌iciente para fazer descer a
pendência processual, gerando-se um outro problema – o inevitável agravamento
dos custos do Estado com a justiça.
Nas execuções cíveis, em concreto, em 1999 assistiu-se à diminuição da percen-
tagem de execuções com duração inferior a um ano, com duração superior a cinco
anos, ao aumento do número de execuções com duração entre os dois e os três anos,
e entre os três e cinco anos4.
E pese embora a maioria das execuções ser baseada em sentenças condenatórias
e em letras de câmbio, a sua duração processual não era uniforme: a maioria das pri-
meiras terminavam no espaço de um ano, enquanto as segundas demoravam entre
dois e a cinco anos (56,5% do seu total)5.
2. Uma das frentes de maior morosidade era – assim e segundo os dados empíricos
disponíveis – a das execuções. Atento o elevado número de processos pendentes, a
situação era considerada dramática, chegando a af‌irmar-se que estávamos perante
uma “justiça cível submersa e colonizada por ações de cobrança de dívidas”6. Perante
um Estado obrigado a comprimir os custos com o seu próprio funcionamento, a
aceitar a comparação das suas estatísticas da Justiça com demais Estados pertencen-
tes à mesma comunidade, houve que perguntar, no que às execuções respeitava: o
modelo conhecido, que implicava permanentes intervenções do juiz, muitas vezes
3. A Reforma da Ação Executiva Trabalhos Preparatórios v. 2 – Relatório do Observatório Permanente da
Justiça Portuguesa, Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, Centro de Estudos Sociais, Edição do
Ministério da Justiça, GPLP, março, 2001, “Capítulo I – A gestão da procura e oferta da justiça cível: o caso
da ação executiva”, 19-39.
4. A Reforma da Ação Executiva Trabalhos Preparatórios v. 2 – Relatório do Observatório Permanente da
Justiça Portuguesa, Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, Centro de Estudos Sociais, Edição
do Ministério da Justiça, GPLP, março, 2001, “Capítulo III – A duração e morosidade da ação executiva”,
86. A diminuição na percentagem de ações com duração inferior a um ano foi a seguinte: 53,3% em 1989,
66,45% em 1993 e 42,8% em 1999. Já a diminuição dos processos com duração superior a cinco anos foi
menos acentuada (de 5% em 1989 para 3,35% em 1999). Em 1999 duravam menos de um ano 64,6% das
ações executivas por falta de pagamento de custas, 59,6% das ações executivas fundadas em autos de con-
ciliação, 45% das ações executivas fundadas em sentença condenatória, 39,1% das execuções baseadas em
escritos particulares, 17,8% das execuções baseadas em letras de câmbio e 16,9% das execuções baseadas
em livranças (ibidem, 87-88). Em 1991 e 1993, 28% das execuções duravam de um a dois anos, mas em
1999 apenas tinham esta duração 23,4% das ações executivas, por falta de pagamento de custas. Em 1999,
as execuções baseadas em letras de câmbio duraram de dois a três anos (27,3%) e de três a cinco anos
(23,9%). Entre 1989 e 1999, as execuções de duração igual ou superior a cinco anos diminuíram de 6,7%
para 1,2%. Porém, em 1999, 27,3% das execuções baseadas em letras de câmbio demoravam mais de cinco
anos (ibidem, 88-91).
5. Ibidem, 91.
6. A expressão foi utilizada por SOUSA, Santos; LEITÃO, Marques; PEDROSO, João; FERREIRA, Lopes. Os
Tribunais nas Sociedades Contemporâneas: o Caso Português, Afrontamento, Porto, 1996; JOÃO PEDROSO,
A Justiça civil em crise: a oportunidade/necessidade de reformar o processo civil. INovos Rumos da Justiça
Cível – Conferência Internacional – Centro de Estudos Judiciários, 9 de abril de 2008 (obra coletiva orga-
nizada pela Direcção-Geral da Política de Justiça), CEJUR, Coimbra Editora, 2009, 59.
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simplesmente ordenadas a requerer ao exequente que informasse o que devia ser
promovido, outras tantas destinadas à prática de atos materiais – e não ao exercício
do poder jurisdicional –, não seria possível tudo repensar? Criar um sistema de
cumprimento coercivo que reservasse ao juiz aquilo que lhe pertence – o exercício
da jurisdição sempre que, no contexto desse cumprimento coercivo, eclodisse um
litígio entre exequente e executado –, atribuindo-se a prática dos demais atos de
execução a alguém que, sendo habilitado pelo Estado a exercer império, não tivesse
de congregar as qualif‌icações e habilitações características de um juiz?
3. Foi sobre este pano de fundo que, em 2000, no âmbito do programa de in-
vestigação acordado com o Gabinete de Política Legislativa e Planeamento (GPLP)
do Ministério da Justiça e o Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (OPJ),
foi elaborado o estudo “A Ação executiva: caracterização, bloqueios e propostas de
reforma”7. O Relatório Preliminar deste estudo, datado de janeiro de 20018, constituiu
o ponto de partida da discussão pública dos modelos de execução, iniciada, com uma
Conferência Internacional, subordinada ao tema “A Reforma da Ação Executiva”,
que teve lugar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, nos dias 2 e 3 de
fevereiro de 20019.
No seu relatório, o OPJ avalia a gestão da procura e oferta da justiça cível nas
execuções cíveis (sobretudo nas execuções para pagamento de quantia certa) entre
os anos de 1977 e de 199010, e conclui que as ações executivas entradas nos tribunais
neste período de tempo cresceram de forma menos rápida do que as ações declarativas
entradas (23.778 ações executivas entradas em 1970 e 180.281 em 1999), podendo
identif‌icar-se três períodos: (i) até 1981, a procura situava-se abaixo dos 50.000
processos; (ii) entre 1982 e 1991, verif‌icou-se um aumento progressivo do número
7. Acerca dos trabalhos preparatórios da reforma da ação executiva entre 2001 e 2003, veja-se LOURENÇO,
Paula Meira. A Reforma da Ação Executiva, Direito em Revista, n. 3, 2001, 32-33; L`Exécution forçée des
obligations pécuniaires au Portugal: situation actuelle et project de réformes, in Nouveaux droits dans un
nouvel espace européen de justice Le droit processuel et le droit de l`exécution, Éditions Juridiques et
Techniques, Paris, 2002, 267-274; Metodologia e Execução da Reforma da Ação Executiva, Themis, ano
IV, n. 7, 2003, 261-284; A ação executiva em Portugal – 2000-2012 – a urgente necessidade de executar as
Recomendações da CPEE, Julgar, n. 18, setembro-dezembro, 2012, 77-80; Processo Executivo, in 40 Anos
de Políticas de Justiça em Portugal, Almedina, 2017, 269-298; SILVEIRA, João Tiago da. A Reforma da Acção
Executiva: traços gerais, metodologia e execução, Vida Judiciária, n. 69, 2003, 19-25.
8. A Ação Executiva: caracterização, bloqueios e propostas de reforma – Relatório Preliminar, Observatório
Permanente da Justiça Portuguesa Centro de Estudos Sociais, Faculdade de Economia, Universidade de
Coimbra, Edição do Ministério da Justiça, GPLP, janeiro, 2001.
9. Esta Conferência Internacional foi organizada pelo GPLP, em colaboração com o Centro de Estudos Sociais
da Universidade de Coimbra, e as intervenções dos seus participantes podem ser consultadas na obra A
Reforma da Ação Executiva – Trabalhos Preparatórios – v. 1 – Conferência de 2 e 3 de fevereiro de 2001,
Edição do Ministério da Justiça, GPLP, 2001.
10. A Reforma da Ação Executiva – Trabalhos Preparatórios – v. 2 – Relatório do Observatório Permanente da
Justiça Portuguesa, Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, Centro de Estudos Sociais, Edição do
Ministério da Justiça, GPLP, março, 2001, “Capítulo I – A gestão da procura e oferta da justiça cível: o caso
da ação executiva”, 7-31.
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