Deslocamento da Democracia da Base do Estado para a Justiça. Papel do Judiciário para a Preservação da Seguranca Jurídica

AutorDaniel Castro Gomes da Costa
Páginas107-153

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Conforme ponderado no capítulo anterior, caso o Estado atuasse de forma adequada na elaboração e interpretação do direito tributário, a tributação seria um instrumento de desenvolvimento positivo para a concretização da cidadania e fortalecimento da dignidade humana.

Nesse cenário, o Poder Executivo está sempre buscando leis que permitam arrecadar mais e mais, sem nenhuma preocupação com a situação dos cidadãos, ou a concretização dos direitos fundamentais. Ao mesmo tempo, o Legislativo é quase sempre subserviente ao Executivo e não traduz a vontade popular, legítima detentora do poder de criar o direito.

Diante dessas omissões, surge o Poder Judiciário como freio desse sistema tributário totalmente falido e desvirtuado do estado democrático de direito, o que denominamos de deslocamento da democracia da base do Estado para a justiça. Notemos que tal fato ensejou que o Judiciário saísse de coadjuvante para protagonista no cenário de ineficácias e frustrações das expectativas legítimas dos cidadãos.

Com efeito, quando o Judiciário cria a norma jurídica concreta, através de suas interpretações, ou até mesmo quando ocorre o ativismo judicial, este atende ao ideal da vontade do povo e tem o dever de preservar a segurança jurídica, que deve ser preservada neste longo caminho de construção dos precedentes/jurisprudência como fonte de direito e justiça.

Dessa forma, observamos que a atuação do homem de se autoorganizar e dispor de seus bens não está limitada apenas na lei criada pelo legislativo, que pressupõe ser da vontade do povo, mas também na norma jurídica concreta cunhada pelo Poder Judiciário, motivo pelo qual o estudo da jurisprudência e precedentes é indispensável para entendermos a construção do direito e enseja na manutenção da estabilidade social e na

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garantia de segurança jurídica como condições de efetivação dos direitos fundamentais.

4.1. Diferença entre Jurisprudência e Precedente

A jurisprudência é o conjunto de decisões proferidas pelos tribunais judiciais. Por tal motivo, o estudo de formação da jurisprudência tornase relevante para a formação do sistema jurídico, seja porque de um lado serve de esteio para os julgados porvindouros, seja porque garante a estabilidade das relações sociais.

Washington dos Santos conceitua jurisprudência como um "conjunto de soluções dadas pelos tribunais às questões de Direito, segundo Carlos Maximiliano; conjunto de decisões uniformes dos tribunais; autoridade dos casos julgados sucessivamente do mesmo modo; ciência do Direito e dos princípios de Direito seguidos em um país, numa dada época ou em certa e determinada matéria legal; fonte secundária do Direito".1Do conceito de jurisprudência extraise que se trata de um conjunto de decisões uniformes, proferidas pelos tribunais, com o desígnio de solucionar conflitos. Logo, se há um conjunto, há uma unidade. E essa unidade é a decisão isolada de um caso concreto que apresentou uma tese jurídica específica, destarte, temos que dessa decisão unitária retirase uma norma jurídica, instituto denominado de precedente.

Com efeito, notamos que há diferenças na adoção do vocábulo jurisprudência e precedente, apesar de muitas vezes serem tratados como sinônimos, ambos guardam significados particulares e não se confundem.

As diferenças entre jurisprudência e precedente podem ser apontadas sob um critério quantitativo e outro qualitativo. No quantitativo, temos precedente uma decisão proferida num caso específico, enquanto jurisprudência referese a uma pluralidade de decisões em que foi aplicado o mesmo precedente. Por outro lado, no critério qualitativo, o pre

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cedente contém uma tese jurídica universalizável, que pode ser aplicada como fundamento para decisões em casos idênticos ou análogos, formando, destarte, a jurisprudência.

Como se vê, a jurisprudência não está atrelada ao quadro fático, mas à aplicação da mesma tese jurídica - norma jurídica - já fixada por uma decisão judicial sob a apreciação de uma situação concreta, ou seja, a aplicação da jurisprudência nada mais é que a adoção de proposições jurídicas abstratas, em forma de regra, originadas dos fatos materiais postos a julgamento.

Luiz Guilherme Marinoni2pronuncia que "todo precedente é uma decisão, nem toda decisão é um precedente (...) o precedente constitui decisão acerca de matéria de direito (...) e não matéria de fato".

Daí advém a importância do estudo da teoria dos precedentes, visto que, ao se afirmar que a jurisprudência é fonte do direito, não se pode desprezar sua concepção, ou seja, não se pode ignorar a forma, os elementos, as técnicas e a eficácia dos precedentes no sistema jurídico.

Tratase, na verdade, de uma preocupação de grande magnitude, pois alocar a jurisprudência como fonte de direito é apontála como elemento de formação do sistema jurídico. E, sob essa perspectiva, podemos afirmar que, ao lado das regras jurídicas, dos princípios expressos e implícitos e dos postulados normativos, está a jurisprudência. Anotamos que todas essas fontes estão voltadas ao mesmo propósito, qual seja, a solução pacífica de conflitos, a manutenção da estabilidade social e a garantia de segurança jurídica como condição de efetivação dos direitos do cidadão.

Diante disso, passamos a examinar no tópico seguinte a origem dos sistemas de jurisdições, concomitantemente aos reflexos na formação do sistema jurídico brasileiro e português, para, depois, apresentarmos a teria dos precedentes, com seu processo de formação, seus elementos, as

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formas de sua modificação e a necessidade de buscar mecanismos jurídicos que preservem a segurança jurídica.

4.2. Abordagem Histórica dos Sistemas de Jurisdições e a Influência no Direito Brasileiro e Português

Para o presente estudo é imprescindível tecer algumas ponderações históricas e metódicas acerca do common law e do civil law, especialmente para a comparação entre ambos institutos, originados em épocas diversas, decorrência de fases políticas, culturais e históricas distintas, portanto com características peculiares conflitantes que ainda refletem no direito contemporâneo de todo o mundo.

O Common Law é o sistema jurídico elaborado na Inglaterra, a partir do Século XII, pelas jurisdições das decisões reais, vindo a ser estabelecido, em razão disso, na maioria dos países de língua inglesa.3Segundo William Blackstone, tal sistema decorre da tese de que o juiz não cria o direito, mas apenas o declara; teoria a partir da qual se defendeu a existência de um direito não escrito - commom law -, que se espelharia tanto nos costumes gerais quanto nos particulares de algumas partes do reino, cortes e jurisdições.4Sob esse enfoque, o common law é definido como "direito comum e natural" proveniente da Inglaterra5. Nesse sistema, depois de uma deci

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são proferida pelo julgador - res judicata -, o precedente deveria ser utilizado em futuros casos semelhantes, ou seja, todas as decisões deveriam respeitar o conjunto de precedentes já consolidados pelos julgadores, vinculando as decisões tomadas posteriormente.

Não se pode olvidar que o common law atual não é como o de outrora, no que se refere ao stare decisis - respeito obrigatório aos precedentes -, pois já foi admitido que o precedente representa apenas uma evidência de direito, portanto pode o juiz pronunciarse contrário ou até revogálo, quando restar demonstrado que sua aplicação pode gerar injustiça no caso concreto.6No entanto sua principal característica, consistente na consideração dos casos concretos como fonte do direito, mantevese inalterada. Nesse sentido, a Professora Teresa arruda Alvim Wambier7assevera que o common law nasceu da lógica natural das coisas; os fatos iam acontecendo e as decisões sendo proferidas segundo os costumes e, reaplicadas em casos semelhantes. Mesma ideia dos precedentes de hoje.

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Observemos que o common law tinha como principal objetivo solucionar as controvérsias sem a necessidade de vincularse a uma regra material de direito, declarando, por fim, com base nos costumes e nos precedentes anteriormente constituídos pelas decisões das cortes, quem, de fato, é detentor do direito no caso concreto.8Surge daí o pensamento de que o common law ocasiona a previsibilidade das decisões judiciais, tendo em vista que os próximos julgamentos, salvo caso especial que altere o precedente judicial9, deverão respeitar os julgados anteriores, e cabe à coletividade conformarse com as decisões unificadas prolatadas pelas cortes, porquanto estas, em tese, garantirão a igualdade ao bem comum.10

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Portanto o common law possibilita a vinculação dos efeitos das decisões para facilitar e resguardar os julgadores e permitir o binding effect - efeito vinculativo - dos julgados proferidos, com a finalidade de garantir a equidade - equity11 - e a segurança jurídica imprescindível ao due process of law.12Tecidos tais esclarecimentos, podemos pontuar as características seguintes do sistema legal do common law: a) originário da Inglaterra e utilizado amplamente nos territórios de colonização britânica; b) em tese, o julgador faz as regras legais e toma como base a tradição, os costumes e os precedentes; c) tem como fonte primária de direito os casos concretos já decididos; d) o mérito do caso concreto é obtido mediante o uso da analogia e dos precedentes; e) é vinculado aos...

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