Desmonte ao Estado Social e o fim do Estado Democrático de Direito: algumas bases teóricas para uma crítica: algumas bases teóricas para uma crítica à avalanche neoliberal e às reformas sociais no Brasil

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas171-183

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1. À guisa de intrudução: o direito na constituição brasileira de 1988 e a mescla de um modelo liberal-social de estado

Considerando-se a função reguladora assumida pelo Estado moderno, o direito - como ordem jurídica (im)posta - acaba se tornando sinônimo de lei, que, por sua vez, passa a ser considerada simplesmente um comando do soberano. Ela é identificada como jurídica pela sua origem, e não pelo conteúdo. Ou seja, ela pode ser “justa” ou “injusta” sem que isso afete a sua qualificação jurídica. Daí a noção weberiana de que, no positivismo jurídico, qualquer direito pode criar-se e modificar-se por meio de um estatuto sancionado corretamente quanto à forma. (ROTH, 1998, p. 17). Assim:

Um sistema de regras é formal na medida em que permite que seus intérpretes, oficiais ou não, justifiquem as suas decisões mediante referência às próprias regras e à presença ou ausência dos fatos enumerados pelas regras, sem consideração de quaisquer argumentos de justiça ou utilidade. (UNGER, 1979, p. 214)

Habermas (1992, p. 14), analisando Weber, aduz, então, que o Direito passa a ser, precisamente, aquilo que um legislador político (independente de ele ser ou não, democraticamente, legitimado) delibera como direito, de acordo com um procedimento legalmente institucionalizado.

O positivismo, nessa fase, parte das leis ou, subsidiariamente, de outras tantas normas sociais da ordem estatuída numa espécie de hierarquia que culmina em ordenamento único, pleno, hermético e consagrado sob a égide estatal. As raízes sociais, a dinâmica dos grupos e das classes, ou não entram em linha de conta, ou ficam atadas e limitadas, pois, em todo caso, prevalece a voz do Estado. Nessa perspectiva, o direito não existe antes do Estado e não paira acima dele. (WOLKMER, 1995, p. 152)

Em Kelsen (1984), já no século XX, esse modelo liberal--positivista vai encontrar a sua proposta mais avançada, na medida em que se concebe que o direito deve ser definido como norma que, por sua vez, constitui-se no objeto da ciência do direito. Para esta, o estudo da lei deve se dar em “sua pureza”, separado de qualquer influência moral, sociológica, psicológica, ou filosófica. O neopositivismo lógico kelseniano3 nasce, no campo jurídico, do esforço de transformar o estudo do direito numa verdadeira e adequada ciência que tivesse as mesmas características das ciências físico-matemáticas e naturais.

Na busca pela segurança e previsibilidade nas relações sociais, conceitua-se o fenômeno jurídico em relação à moral e à política de maneira “autônoma”, recusando-se a justiça e a eficácia como critérios de juridicidade, de modo que o positivismo deverá elaborar o seu próprio critério do que é jurídico. Esse será a “validade”. (UNGER, 1979, p. 213-231)

Destarte, no âmbito da interpretação e da aplicação da norma jurídica, as possibilidades de discussões acerca da justiça ou da ética são expurgadas na medida em que a tarefa do jurista, em especial do juiz, consiste na mera aplicação da lei ao caso concreto. Não se discutem, portanto, requisitos éticos de validade da lei ou, mesmo, a justiça no caso concreto. Sobre isso, Bobbio afirma:

A validade de uma norma jurídica indica a qualidade de tal norma, segundo a qual existe na esfera do direito ou, em outros termos, existe como norma jurídica. Dizer que uma norma jurídica é válida significa dizer que tal norma faz parte de um ordenamento jurídico real, efetivamente existente numa dada sociedade. (BOBBIO, 1995, p. 136-7)

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Dentre os mitos compartilhados pelo positivismo jurídico, os mais aceitos e consolidados são os dogmas da coerência, da completude e da unidade do ordenamento jurídico, vetores para a consolidação dos propósitos da segurança e certeza jurídicas exigidos pela sociedade de mercado. O direito positivo é pressuposto como auto-suficiente, preciso e claro; nele todos os conflitos e fatos ocorrentes no mundo da vida encontram a possibilidade de um enquadramento lógico-dedutivo.

Quanto à atividade interpretativa, tanto em seu momento teórico quanto decisório, seria uma atividade dedutiva, que revelaria caminhos lógicos tendentes a explicitar a racionalidade profunda do sistema de direito positivo. “Criam, pois, uma ilusão, ou uma aparência de realidade, em relação a duas afirmações fictícias: a de que a ordem jurídica oferece segurança e, depois, que o legislador é sempre racional em suas determinações e prescrições”. (WARAT, 1994, p. 53)

Todavia, deve-se registrar que esse modelo liberal-individualista-normativista4 sofreu algumas alterações, no âmbito da teoria do direito, que acompanharam as transformações estatais. Na passagem do Estado liberal para o Estado social , dois tipos de influência imediata podem ser destacadas. O primeiro tipo refere-se à “rápida expansão do uso de normas ilimitadas e de cláusulas gerais na legislação, administração e jurisdição”, como se pode identificar na reaproximação entre Estado e Sociedade (garantias de direito sociais, interferência mais intensa do estado na economia, etc.). O segundo tipo de impacto do Estado social sobre o direito é a “transição de estilos de raciocínio legais formalistas para estilos teleológicos ou prudenciais, da preocupação com a justiça formal para um interesse na justiça processual e substantiva”. (UNGER, 1979, p. 204)

O Estado Social identificado a partir do século XIX trouxe, principalmente em países como, por exemplo, Alemanha e México, uma proposta de (re)discussão do direito no qual prevaleceria o raciocínio jurídico teleológico e as preocupações com a justiça distributiva. Com isso, “o estilo do discurso jurídico passa a se assemelhar ao do argumento comum da política ou da economia. Todos se caracterizam pelo predomínio do racionalismo instrumental sobre outras formas de pensamento.” (UNGER, 1979, p. 209)

Mas, apesar dessas propostas, a maneira de se operacionalizar o direito no convívio social ou, dito de outra forma, o modo de produção do direito5 segue influenciado preponderantemente pelo modelo liberal-individual-normativista, o que, por sua vez, acaba gerando - juntamente com outros fatores, como, por exemplo, a globalização e seus efeitos deletérios - uma dificuldade de efetivação dos direitos humanos em sua plenitude polidimensional (direitos civis, políticos, econômicos, sociais, comunicacionais, dentre outros).

O que se verificou ao longo da modernidade, principal-mente no século XX, foi uma espécie de “vitória” de ideologias forjadas sob discursos formalistas6 sobre dois dos principais ideais do Estado social, quais sejam a eqüidade e a solidariedade.

Dizia Orwell, citado na epígrafe da obra de Bauman:

Enquanto escrevo, seres humanos altamente civilizados estão sobrevoando, tentando matar-me. Não sentem qualquer inimizade por mim como indivíduo, nem eu por eles. Estão apenas ‘cumprindo o seu dever’, como se diz. Na maioria, não tenho dúvida, são homens bondosos e cumpridores das leis, que na vida privada nunca sonhariam em cometer assassinato. Por outro lado, se um deles conseguir me fazer em pedaços com uma bomba bem lançada não vai dormir mal por causa disso. Está servindo ao seu país, que tem o poder de absolve--lo do mal. (BAUMAN, 1999)

O exemplo da Guerra moderna, em especial da Segunda, serve apenas para reforçar o panorama de predomínio da técnica e do formalismo que marcaram a racionalidade do século XX. Essa ideologia, paradoxalmente, acompanhou o processo de afirmação (e de negação) dos direitos fundamentais, bem como do constitucionalismo no século passado.

Questões envolvendo a ética com a política e o direito - a partir da segunda metade do século XX - tornaram-se objeto de investigação de juristas e filósofos do direito, no intento de superar o hermetismo positivista delimitado alhures. No âmbito jurídico dois fatores marcaram esse resgate ético: a expansão da proteção normativa internacional dos direitos humanos, no pós II Guerra, e a difusão de Constituições impregnadas de ideais democráticos, principalmente em países marcados pelo autoritarismo como foram, por exemplo, os casos de Portugal e Espanha, na Europa e o Brasil, juntamente com os demais países latino-americanos, todos na segunda metade do século XX. Esses dois fatores jurídicos (Tratados e Constituições), na verdade, são apenas espelhos das preocupações contemporâneas com

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fenômenos que vêm marcando um novo período do convívio humano - iniciado aproximadamente a partir da segunda metade do século XX e que ainda se encontra em aberto.

Tais fenômenos deveram-se ao reconhecimento de tormentosa complexidade das relações sociais, principalmente, a partir da segunda metade do século XX. Nesse período, o convívio humano foi abalado por diversos impactos, tais como: o avanço tecnológico em todas as áreas de conhecimento; a insurgência de novos valores e direitos que se tornaram parte integrante do receituário axiológico da democracia de massas; e, ainda, as transformações do processo político “permeável às condicionantes de uma nova ordem internacional que, longe de estabilizar o convívio das nações e melhorar a qualidade de vida dos povos do planeta, apresenta novos desafios e angústias para a humanidade.” (CASTRO, 1999, p. 103)

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