Dever do administrador de s/a de agir conforme o interesse social

AutorMarcelo Barbosa Sacramone
Páginas301-307

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Ver Nota1

I -A origem das sociedades comerciais

A existência de sociedades comerciais, em sua forma mais arcaica e rudimentar, remonta aos primórdios da civilização. A sociedade é formada como solução a uma carência humana, como meio de suprir a deficiência de um indivíduo, o qual não possuiria isoladamente todas as condições e capacidades para realizar uma determinada atividade ou alcançar um específico objetivo.

Já na antiguidade romana as sociedades ocupavam relevância no contexto social. As societates publicanorum, como exemplo, eram constituídas à época para explorarem atividades ligadas ao Poder Público, como a arrecadação de impostos e a execução de serviços e obras públicas.

A constituição de patrimônio próprio separado do patrimônio dos sócios, entretanto, somente começou a se delinear a partir da Idade Média. Segundo Vivante, a concepção de entes coletivos aos quais a lei atribui personalidade jurídica, autônoma em relação à de seus membros, possibilitando-os tornarem-se titulares de direitos e sujeitos de obrigações na ordem jurídica, é uma conquista do direito medieval italiano. Teria o direito romano somente regulado os efeitos do contrato de sociedade, não formando um conceito geral de patrimônio separado administrado pelos sócios.2

O primeiro normativo a regular os direitos dos sócios e sua responsabilidade pelas obrigações comuns foi o Editto di Rotari, baseado no direito consuetudinário e instituído em 643 durante a invasão dos lombardos à Itália.3 O normativo explicita o papel das sociedades fraternais como germe das sociedades em nome coletivo modernas.

As sociedades medievais eram baseadas no vínculo sanguíneo, com o escopo de possibilitar aos herdeiros prosseguirem com os negócios do falecido, viabilizando

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à coletividade familiar a exploração em comum dos bens hereditários indivisos.4 Estruturavam-se na comunhão dos que moravam à mesma casa, dos que sentavam ao redor da mesma mesa e comiam do mesmo pão - ad unum panem et vinum - como símbolos da filiação de um indivíduo a uma família.5

Com fulcro no vínculo real da indivisibilidade do patrimônio, o normativo regulava, no § 167, a solidariedade ativa entre os diversos membros ao disciplinar o regime dos bens na sociedade de irmãos após a morte do genitor e a passiva, no § 247, ao obrigar os herdeiros a responder solidariamente e ilimitadamente pelas obrigações contraídas pelo chefe da família.6

A partir do ano 1000, o fim das invasões bárbaras proporcionou a retomada do crescimento demográfico, o que, aliado ao retorno do tráfico marítimo e do comércio de bens com o Oriente que reintroduziu o uso do dinheiro como forma de negociação, provocou a migração de colonos feudais para os novos centros de trocas, as cidades.

Visando ao auxílio recíproco e ao aumento de poder para contrapor-se ao bispo ou conde que regia a cidade, esses novos cidadãos passam a se associar, formando as denominadas societates, conjurationes ou fraternitates. A pouca disseminação da cultura na estrutura feudal, no entanto, fez com que as associações dos antigos servos da gleba se estruturassem nos mesmos princípios consuetudinários vigentes até então.7

O vínculo volitivo sucede assim o sanguíneo, mas as sociedades formadas entre artesãos e mercadores continuam a se basear na forma consagrada das asso-ciações familiares ou parentais. A solidariedade pelos atos realizados por um sócio, logo, não poderia se fundar mais na indivisibilidade do patrimônio, passando a se basear na utilidade comum a que eram endereçados os atos.8 Em outras palavras, qualquer pessoa que frequentar o mesmo local de trabalho e dividir as mesmas ferramentas deve responder pelas obrigações contratadas no interesse do grupo.9

Apesar de sua origem primitiva poder voltar-se à corresponsabilidade do núcleo familiar, é com o pacto social que a solidariedade se afirma. A solidariedade pressupõe um sujeito unificado e, assim, um vínculo único não obstante a pluralidade de devedores. Ela decorre da unicidade do vínculo garantido pela destinação do patrimônio.10

Prevaleceria, então, o vínculo familiar como origem, mas juridicamente passa a ser sobre o contrato de sociedade, com os elementos característicos de manifestação volitiva, que se fundamentam os limites dos direitos e das obrigações.11

II-A comunhão de interesses como fundamento do ente coletivo

A diferença entre a criação da sociedade comercial através de um contrato plurilateral e a criação do Estado revela-se ser mais de natureza quantitativa que qualitativa.

Rousseau sustenta que o estado primitivo cessa quando os obstáculos danifica-dores de conservação do homem no estado natural superam a força que o indivíduo

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pode empregar para se conservar. O Estado é criado para que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada sócio, de modo que, unindo-se cada um a todos, o indivíduo não obedeça senão a si mesmo e fique tão livre como antes.12

Neste ponto, assim como a sociedade comercial, o Estado surge de uma carência do indivíduo que não pode por seus recursos, ou seja, por sua própria força, conservar seus bens e sua própria sobrevivência diante de outras pessoas. O ente coletivo surge para suprir essa deficiência individual unindo os esforços de todos os membros para o objetivo comum.

Nesse contexto, há o sacrifício dos primitivos direitos e da liberdade natural em prol de toda a comunidade. Como o sacrifício é de todos e, como todo membro adquire o mesmo direito que foi cedido, adquire-se o equivalente de toda a liberdade cedida e mais a força coletiva para a conservação da pessoa e dos bens. Em suma, "cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral, e recebemos enquanto corpo cada membro como parte indivisível do todo".13

Segundo Rousseau, "a primeira e mais importante consequência dos princípios até aqui fundamentados é que só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado segundo o fim de sua instituição, o bem comum, pois, se a discordância dos interesses particulares tornou necessária a fundação das sociedades, a harmonia desses interesses a possibilitou. Eis o que há de comum nos diversos interesses que formam o laço social, e não existiria sociedade alguma a não haver ponto em que os interesses concordem. Ora, é somente nesse comum interesse que deve ser governada a sociedade".14

Nas sociedades comerciais, de maneira correlata, os sócios membros cedem parte de sua liberdade de livremente dispor, usar e gozar de parcela de bens de sua propriedade e, em contrapartida, tornam--se coproprietários de uma universalidade de bens integrante do capital social.

Mas o ato constitutivo da sociedade não se perfaz unicamente com a integra-lização das ações com a entrega de bens, em contrapartida à aquisição de parte ideal da universitas rerum formada...

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