O devido processo legal como solução para a motivação na despedida

AutorSilvia Isabelle Ribeiro Teixeira do Vale
CargoJuíza do Trabalho no TRT da 5a Região
Páginas37-55

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1. Introdução

Passados mais de vinte e cinco anos da promulgação da Constituição de 1988, ainda é lamentável que alguns dos Direitos Fundamentais Sociais ainda pendam de “regulamentação” pelo Poder Legislativo. A solução para a inércia legislativa pode e deve passar pela nova missão que se apresenta ao Poder Judiciário, vez que vinculado objetivamente ao Texto Constitucional, em um contexto pós-positivista.

O art. 7º, I, do Texto Constitucional é um dos dispositivos mais debatidos desde a formação da Assembleia Nacional Constituinte, que ofertou a redação tal como se vê no rol dos Direitos Fundamentais trabalhistas. A inércia do Estado-Legislador é evidente e as soluções para esse hiato são várias, a exemplo da inter-pretação pela autoexecutoriedade da primeira parte do referido dispositivo constitucional, que, em verdade, é direito de liberdade e não prestacional; ou, até, a exegese segundo a qual despedir de forma vazia o empregado é ato antijurídico, pois assim já restou disposto pela Constituição.

O presente trabalho, sem desprezar as soluções exempli?cadas, intenta apresentar mais uma via de possibilidade para a aplicação da regra da proibição ao arbítrio: o devido processo legal aplicado à relação privada de emprego, já que o trabalhador é um cidadão e esse direito laboral inespecí?co lhe é aplicável.

2. Eficácia dos Direitos Fundamentais na relação de emprego

Embora o art. 5º, § 1º, do Texto Constitucional não discrepe em relação à e?cácia dos Direitos Fundamentais — se o destinatário pode ser o particular ou não —, assegurando que todos eles, sejam defensivos ou prestacionais, de liberdade ou sociais, possuem aplicação imediata, ainda se discute demasiadamente sobre o alcance do indigitado regramento. A doutrina e jurisprudência trabalhistas ainda não possuem um bom desenvolvimento sistemático acerca da aplicação dos Direitos Fundamentais na relação privada de emprego, embora muito se decida no cotidiano nesse sentido.

É bastante observar, por exemplo, que sempre que se decide que um determinado empregador não pode praticar revista íntima ou nos pertences dos seus respectivos empregados, está a se dizer, em síntese, que o direito à intimidade ou privacidade é resguardado na relação privada de emprego, efetuando-se uma ponderação entre tal direito fundamental e a livre-iniciativa no caso concreto e quando há procedência no pedido indenizatório, em palavras mais técnicas, quer-se dizer que a livre-iniciativa não é princípio absoluto, podendo ser restringido quando em colisão com o direito à intimidade, e que o peso desta é maior na relação privada de emprego, diante da assimetria decorrente do poder social do empregador.

A análise passa, necessariamente — embora habitualmente não se diga — pelos testes prévios da proporcionalidade, como a adequação (o meio — revista íntima ou nos pertences — era adequado a se coibir apropriações indébitas no ambiente de trabalho?) e a necessidade (havia outro meio menos agressivo para o alcance da ?nalidade?), para se chegar ao resultado procedência ou improcedência do pleito indenizatório, mas normalmente a argumentação não preza pela técnica e passa logo para o juízo de proporcionalidade, embora intrinsecamente se diga exatamente o que foi sinteticamente analisado.

A relação de emprego é, antes de tudo, uma relação de poder, constituída em torno da assimetria1 ?rmada na contratação entabulada

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entre empregado e empregador, e tal realidade justi?ca a aplicação forte dos Direitos Fundamentais nesse tipo de relação havida entre particulares2.

Vale dizer, diante da concepção dos Direitos Fundamentais como ordem de valores, há irradiação de efeitos dos mesmos para todos os âmbitos da sociedade, inclusive para as relações travadas entre particulares “iguais”, e no caso da relação de emprego, o poder social e econômico que lhe é próprio justi?ca e estimula a aplicação dos aludidos direitos de forma direta e imediata3, embora se reconheça que o problema não é assim tão facilmente resolvido, tendo-se que na relação de emprego ambos os pactuantes são titulares de Direitos Fundamentais (normalmente a “colisão” é ?rmada da seguinte forma: livre-iniciativa versus direito à cidadania ou personalidade) e essa questão somente poderá ser resolvida, concretamente, segundo a técnica da ponderação de princípios constitucionais, com os olhos do examinador voltados para a concordância prática entre os mesmos, elaborando-se um juízo de ponderação, constituído em torno da análise da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

Se é certo que o poder social próprio da relação de emprego justi?ca a penetração de todos os Direitos Fundamentais nesse tipo de relação privada, não menos correto é a?rmar que essa mesma assimetria serve como peso para de?nir o alcance ou limitação da autonomia do empregador na supressão ou diminuição dos Direitos Fundamentais do empregado.

Com isso não se quer a?rmar que sempre haverá a mesma solução para o caso de colisão de Direitos Fundamentais na relação de emprego. Aqui vale a advertência já perpetrada por Alexy4, segundo a qual a lei de colisão é ?rmada quando há afronta de um princípio constitucional em face de outro princípio constitucionalmente previsto, mas o resultado sempre dependerá de circunstâncias presentes no caso concreto, que serão analisadas topicamente, tendo-se que todos os princípios são analisados e válidos prima facie, não havendo precedência absoluta de um em relação ao outro.

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Perceba-se, inclusive, que não se fala em e?cácia horizontal porque a relação de emprego não é horizontal, as partes não estão no mesmo patamar5. Ao revés, há uma verticalidade entre empregador e empregado, tendo-se que este se submete às regras ?rmadas unilateralmente por aquele, que é detentor de “poder” diretivo, podendo, inclusive, aplicar a pena capital, que é a resilição contratual.

Em decisão paradigmática, já decidiu a 2a

Turma do Supremo Tribunal Federal, em 1996, sobre a incidência dos Direitos Fundamentais nas relações privadas, no Recurso Extraordinário
n. 161.243-6/DF, onde foi Relator o Ministro Carlos Mário Velloso. Na lide analisada, o empregado brasileiro da Air France pretendia o reconhecimento de direitos trabalhistas assegurados no Estatuto do Pessoal da Empresa, tendo o tribunal acolhido a pretensão com fulcro no princípio da igualdade:

CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIRO EMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA: APLICABILIDADE AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO. CF, 1967, ART. 153, § 1º, CF, 1988, ART. 5º, CAPUT.

I – Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade” (CF, 1967, art. 153, § 1º, CF, 1988, art. 5º, caput).

II – a discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional. Precedente do STF: Ag 110.846 (AgRg) – PR, Célio Borja, RTJ 119/465.6

O grande problema da e?cácia dos direitos fundamentais nas relações privadas não se limita à ?liação à tese da e?cácia mediata7 ou imediata8, já que a Constituição Federal de 1988 em seu art. 5º, § 1º assegurou o princípio

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da máxima e?cácia dos Direitos Fundamentais, não discriminando se tal eficácia seria em desfavor do Estado ou dos particulares, ou se estes seriam vinculados de forma negativa ou positiva aos aludidos Direitos. Assim, toda a problemática da dita e?cácia dos diretos fundamentais nas relações particulares é questão de colisão de interesses constitucionalmente assegurados, pois, topicamente, o problema será o contraponto entre dois princípios fundamentais que, no ?m, garantem ou se elevam com o próprio princípio constitucional da autonomia privada9.

Tendo-se as teorias aludidas, força é concluir que não há um modelo que isoladamente acarrete perfeição, sendo viável a combinação de modelos. Assim, diante da dimensão objetiva própria dos Direitos Fundamentais, estes se irradiam para todo o ordenamento jurídico, vinculando todos os Poderes Públicos e também os particulares, mas, quando há con?ito entre a livre-iniciativa e qualquer outro Direito Fundamental cujo titular é o empregado, a solução da ponderação de interesses não pode desprezar que o Legislador tem o dever de prever a respectiva conduta, diante do dever de proteção que lhe é próprio. Em um segundo momento, em não havendo lei a regulamentar e resolver o con?ito, cabe ao Judiciário aplicar diretamente a Constituição para a resolução do caso concreto, tendo-se que este Poder também é vinculado aos Direitos Fundamentais de forma objetiva, sendo seu também o dever de salvaguardar tais direitos. Daí a importância da concepção de Direitos Fundamentais como princípios e estes como normas jurídicas.

A junção de modelos rebate completamente o argumento contrário à tese da e?cácia direta dos Direitos Fundamentais nas relações privadas, no tocante à maximização dos poderes do Juiz, pois permite que o Legislador cumpra o seu mister constitucional, protegendo os Direitos Fundamentais, mas, quando este...

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