Dez anos de racionalizacao da gestao judicial no Brasil: efeitos e perspectivas/Ten years of rationalization of judicial management in Brazil: effects and perspectives.

AutorKoerner, Andrei

Introducao (1)

O artigo apresenta uma analise preliminar das tendencias e limites das reformas do Poder Judiciario, a partir de levantamento de dados sobre as medidas adotadas de 2005 a 2014. Sao analisadas as medidas tomadas pelo Conselho Nacional de Justica (CNJ), a Secretaria de Reforma do Judiciario (SRJ) e os tribunais, a variacao no numero de processos ingressados e julgados, assim como os debates politicos sobre o modelo institucional do CNJ e do Judiciario. Atualiza-se a analise realizada em 2010, que considerou as reformas implementadas de 2004 a 2009 (Koerner, Inatomi e Baratto, 2010). Tambem se retoma discussao anterior sobre reforma do Judiciario e democracia no Brasil (Koerner, 1999).

A analise de 2010 permitiu tracar consideracoes importantes tanto sobre os resultados quanto sobre os objetivos das reformas. As reformas implantadas apos 2004 alcancaram alguns resultados esperados: os juizes tiveram sua atividade intensificada, julgando um maior numero de processos por ano; a tendencia ao aumento explosivo dos processos em andamento foi contida; e a conciliacao ou o arquivamento por motivos processuais permitiram a rejeicao previa ou a rapida solucao de muitos processos. Ou seja, havia passado a percepcao de que o sistema judicial estava proximo de um colapso. Ao mesmo tempo, contudo, os dados mostraram que se mantinham o deficit entre processos ingressados e julgados, dado o alto numero de processos novos, e o alto patamar de processos em andamento.

De modo geral, as reformas tem sido voltadas a racionalizacao da gestao do Poder Judiciario, por meio de novos instrumentos gerenciais de acompanhamento dos processos e da atividade dos juizes. Elas promovem a simplificacao processual e formas consensuais para aumentar a rapidez da tramitacao, reduzir os custos e diminuir o numero de processos. A justica consensual aparece como panaceia, orientando inclusive as politicas voltadas a ampliacao do acesso ao Judiciario e a efetividade dos direitos.

A analise sublinhou o fato de que a simplificacao dos processos cria problemas para a efetividade dos direitos constitucionais dos cidadaos. A reformas incentivam juizes e partes a encerrar os litigios na primeira oportunidade, e com isso acabam por implicar a limitacao das oportunidades de os cidadaos poderem explicitar suas concepcoes de justica e de efetivarem seus direitos no curso dos processos. Elas suprimem as oportunidades de os litigantes enfrentarem preconceitos de senso comum por meio da exposicao de suas experiencias e pontos de vista, a producao de provas, de modo a receberem a atencao de todos os participantes as suas compreensoes normativas sobre a justica. Elas limitam a oportunidade de focar a atencao nas questoes sociais e normativas subjacentes aos litigios. Por isso, eles tendem a reforcar a indiferenca as desigualdades sociais, alem de reproduzir as distorcoes para as oportunidades de acao geradas pelas condicoes precarias nas quais os cidadaos exercem seus direitos. Enfim, as reformas acabam por reforcar a baixa efetividade dos direitos dos cidadaos, embora aumente o numero de litigios ingressados e julgados no Judiciario.

O artigo de 2010 tracava um cenario no qual haveria intensa atividade dos juizes, com amplo acesso dos cidadaos a justica e gestao eficiente dos processos judiciais. Estimava-se que o numero de novos processos se manteria em altos patamares e os processos tenderiam a serem julgados ou encerrados de forma muito rapida. Porem, apesar das reformas, o resultado dos processos judiciais apresentaria graves insuficiencias do ponto de vista da efetividade dos direitos constitucionais. Concluia-se que as reformas eram insuficientes porque elas eram cegas para os problemas para os problemas de efetividade dos direitos numa sociedade desigual e conflituosa. Propunha-se que, para evitar a reproducao das desigualdades, a reforma deveria ampliar os espacos de deliberacao nos processos, nos quais poderiam ser expressas as distintas experiencias dos sujeitos, e as suas proprias compreensoes de justica e de vida boa. Os juizes deveriam realizar o exame dos casos de forma mais cuidadosa e atenta a diversidade de formas de vida, as multiplas dimensoes das desigualdades e as violacoes sobrepostas de direitos.

Outro ponto analisado foi o das relacoes entre os juizes e os dirigentes dos tribunais. O Conselho Nacional de Justica (CNJ) promoveu mudancas administrativas profundas no Judiciario. No entanto, o CNJ tem pouca capacidade de implementar as reformas, porque elas dependem dos dirigentes de cada tribunal. Alem disso, os novos instrumentos de gestao ampliavam os controles mais estritos sobre o desempenho dos juizes, o que alterou as relacoes entre eles e os seus dirigentes, e colocou a questao da propria legitimidade dos orgaos de direcao do Poder Judiciario. Deste modo, os novos instrumentos de gestao recolocavam na pauta o problema da democratizacao interna do Judiciario, e suas relacoes com a participacao cidada.

O presente artigo atualiza os dados daquele artigo em tres pontos (2): a analise das recomendacoes do CNJ para os tribunais implementarem a reforma e as medidas adotadas pela Secretaria da Reforma do Judiciario (SRJ); o numero de processos ingressados e julgados pelos tribunais, complementados com uma apreciacao dos possiveis efeitos da vigencia do Novo Codigo de Processo Civil (NCPC); e, enfim, a atuacao do CNJ no que tange as politicas de gestao estrategica do Judiciario, e suas relacoes com os dirigentes dos tribunais e os juizes.

Depois de 2009 verificam-se algumas inflexoes importantes nas medidas de reforma: primeiro, a enfase em acoes voltadas a efetividade dos direitos no ambito dos servicos auxiliares, a promocao da consciencia dos direitos dos cidadaos e a ampliacao do acesso ao Judiciario, por modalidades informais por parte do CNJ e da SRJ. Segundo, a relativa ineficacia das medidas voltadas a diminuicao do deficit de processos julgados face aos ingressados e a reducao do acervo de processos em andamento, com excecao dos tribunais superiores (STF e STJ). As reformas do NCPC, com, entre outras, a regulacao dos processos repetitivos e o reforco do carater vinculante de julgados de tribunais superiores, deverao produzir efeitos importantes. Terceiro, depois da tentativa frustrada de impor o cumprimento de metas em 2009, o CNJ e as Presidencias dos tribunais institucionalizaram modalidades publicas e consensuais para a adocao das metas de reformas e de desempenho, cujo cumprimento e agora expressamente de carater indicativo. Recentemente, o CNJ passou a tomar o cumprimento das metas como indicadores para decisoes sobre a avaliacao dos programas elaborados pelos tribunais. Esses dados indicam a institucionalizacao do papel do CNJ como orgao de planejamento e gestao do Judiciario a nivel nacional e tendencias nao isentas de tensoes.

Pode-se entrever a permanencia de problemas, relacionados a duas questoes centrais nao tematizadas pelas politicas de reforma. Primeiro, o numero de processos tendera a continuar aumentando, pois as reformas se dao num quadro de democracia e de participacao politica, mas com desigualdades sociais e frageis acoes pela efetividade dos direitos. Dada a conflitualidade das relacoes sociais e violacoes sobrepostas de direitos em nosso pais, os cidadaos continuarao a buscar o reconhecimento dos seus direitos pelas vias institucionalizadas que lhes sejam acessiveis, sem excluir outras formas de acao individual ou coletiva. O acesso ao Judiciario tem sido promovido e facilitado por politicas estatais, em particular campanhas de conscientizacao e a expansao dos servicos de defensoria. A melhoria relativa da eficiencia do Judiciario produzira um "efeito-demonstracao" para potenciais usuarios, que passarao a ve-lo como viavel contra violacoes de seus direitos. Enfim, as reformas serao insuficientes para alterar o calculo de grandes corporacoes a transferirem aos usuarios o onus de tornar efetivos seus direitos, no Judiciario ou noutro locus de negociacao. Elas tendem, inclusive a serem incentivadas a continuarem nessa via, na medida em que as reformas enfatizam o discurso do consenso e da transigencia, baseadas no inadequado diagnostico de uma cultura da litigacao no pais (3).

Segundo, os problemas administrativos e as tensoes internas do Judiciario continuarao presentes, suas respostas as demandas sociais permanecerao inadequadas e os espacos de participacao cidada manter-se-ao bastante limitados. Embora tenha promovido a integracao dos tribunais, o seu planejamento estrategico e controle de suas atividades, a reforma fortaleceu o fechamento da instituicao sobre si mesma. A resposta as tensoes internas, com o aumento da intensidade do trabalho e dos controles sobre os juizes e servidores, tem sido uma limitada ampliacao da participacao de representantes internos nas decisoes e o atendimento de demandas "sindicais", por melhores condicoes de trabalho e de remuneracao. Os dirigentes do Judiciario tenderao--ainda mais se for aprovada a emenda das eleicoes diretas para a direcao dos tribunais--a se tornarem porta-vozes perante os representantes das demandas organizadas de juizes e servidores, justificadas pela melhoria dos servicos jurisdicionais. Porem, na ausencia de participacao externa, e dada a permeabilidade da direcao dos tribunais a demandas internas de distribuicao de recursos, as decisoes tenderao a priorizar beneficios para os seus membros, em detrimento de investimentos para ampliar a capacidade e a qualidade dos servicos. Desse modo, o diagnostico focado em questoes internas combina reformas gerenciais e insulamento institucional do Judiciario, tendendo a reforcar os problemas existentes.

Em resumo, o presente artigo e critico em relacao as politicas de reforma porque considera que partem de um diagnostico inadequado e adotam medidas insuficientes e contraditorias. Considera-se que os problemas do Judiciario sao de gestao e complexidade dos procedimentos, e que existiria em...

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