A dialética da regulação

AutorRenata Queiroz Dutra
Páginas266-309

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5.1. Regulação do capital x regulação do trabalho

O novo modo de ser do capitalismo, em sua fase flexível, financeirizada e monopolista, ao contrário do modelo de vida livre e autónomo prometido, impõe a precarização das relações de trabalho, com intensificação do labor448, manipulação da subjetividade dos trabalhadores449, aprofundamento das inseguranças sociais450, fragilização de identidades e coletivos de trabalho e, ao cabo, a precarização da vida.

O discurso neoliberal que difunde a maximização do indivíduo, em verdade, termina por sacrificar os sujeitos e vulnerabilizá-los além dos limites do contrato e do tempo do trabalho.

Diferentemente do que prega o credo neoliberal, a imposição de limites ao capital e o estabelecimento de normas de proteção àqueles que vivem do trabalho nunca se justificou tanto, diante do caráter predatório do modelo de acumulação flexível e do aprofundamento da insegurança social dos trabalhadores.

O caso dos operadores de telemarketing é emblemático, na medida em que estes reúnem na conformação do seu trabalho aspectos centrais da nova organização do capital, como a privatização de atividades estatais essenciais, a terceirização trabalhista como estratégia de gestão, a financeirização, a administração por estresse, a remuneração por desempenho, os estímulos concorrenciais, os baixos salários e a alta rotatividade no emprego451. Mais grave: o perfil etário, racial e de gênero dos trabalhadores recrutados para o setor aprofundam a mera ideia de hipossuficiência económica (acentuada pelo desemprego na região estudada), para colocá-los em verdadeira situação de vulnerabilidade social em face do empregador e de outros sujeitos sociais.

Trata-se, portanto, de cenário de precarização do trabalho e da vida, moldado pelo novo modo de ser do capitalismo. As raízes desse processo se deitam não apenas num

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novo modo de ser das relações econômicas e de produção, mas, de modo a elas acoplado, num modo específico de ser da regulação social do trabalho. Segundo Druck, o termo "precarização social do trabalho" integra dois importantes conceitos, como uma "dupla institucionalização da instabilidade": o conceito de precarização econômica (estrutura produtiva e salarial) e o de precarização da proteção social (legislação do trabalho e do aparato de regulação que a assegura)452. Assim, a precarização é entendida como uma estratégia de dominação do capital sobre a classe trabalhadora, que envolve, de forma constitutiva, a esfera da regulação.

Nesse cenário, vale o resgate da premência social e do compromisso político embutido na Constituição de 1988, no sentido da pactuação de uma normatização de proteção aos sujeitos-trabalhadores, do delineamento de uma arquitetura institucional de proteção ao trabalho (para concretização da normatização prescrita), assim como da conformação de um horizonte de cidadania e de democracia que envolve a participação ativa dos sujeitos e das coletividades de trabalho nessas dinâmicas reivindicativas da efetividade dos direitos já garantidos e da conquista permanente de novos direitos.

A perspectiva adotada nessa pesquisa conduz à demonstração da relevância da cidadania como pressuposto para a construção de uma proteção social efetiva ao trabalho na esfera da regulação. Pressupõe compreender, a partir das disputas e fragilidades que debilitam a atuação de instituições públicas e mesmo das instituições sindicais, o relevante papel dos sujeitos, individual e coletivamente considerados, e da condição jurídica de titulares de direitos e de dignidade como requisito para a efetiva-ção da proteção ao trabalho nos termos em que posta na normatização e para além dela, num processo continuado de ampliação de direitos em prol da emancipação da classe trabalhadora (senão por meio do direito, tendo-o como uma das frentes de uma longa construção).

O percurso da pesquisa e as reflexões teóricas levantadas conduzem à percepção de que as contradições residentes no Direito do Trabalho se projetam vivamente na esfera da regulação social do trabalho, oscilando de acordo com as especificidades das novas dinâmicas produtivas.

É contraditória e complexa a ideia de um direito de insurgência, que nasce da luta social e que tensiona o capitalismo a partir de suas próprias bases jurídicas, o fazendo de modo a permitir avanços, proteção e segurança à classe trabalhadora, ao mesmo tempo em que legitima o modelo de exploração do trabalho453.

Lyon-Caen considerou reducionistas as perspectivas quanto ao Direito do Trabalho que o compreendiam ou exclusivamente como disciplina que legaliza a exploração capitalista do trabalho, "cloroformizando" a ação operária; ou superficialmente como disciplina que supera a luta de classes e põe termo à questão social por meio de normas tutelares.

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Para o autor, a legislação do trabalho em países capitalistas não é senão a mistura entre garantias altruístas e engodos legitimadores454:

O que todo ordenamento legal delineia é a estrutura mesma, que o direito estatal mantém; e reduzir todo o direito a isto é transformar o direito em mero instrumento de domínio classista, pouco importando que contradições ele apresente, em todo caso subordinadas e contidas pelo sistema instituído.455

É nessa contradição também que Mauricio Godinho Delgado, ao mesmo tempo em que identifica no Direito do Trabalho uma política pública de inclusão social e de melhoria das condições dos trabalhadores, reconhece a função conservadora desse ramo do Direito, que legitima e acomoda a forma capitalista de exploração do trabalho456.

O próprio Marx, tratando da legislação social do trabalho, vislumbrou ali amplo potencial emancipatório porquanto, ainda que ela revelasse altos níveis de legitimação do sistema de exploração do trabalho pelo capital, reconheceu naquela possibilidade de relativização da exploração, o fomento de inconformismos e a criação de um horizonte de organização coletiva para finalidades emancipatórias mais amplas que os direitos decorrentes do assalariamento457.

E, ainda em 1850, recomendava que a classe trabalhadora extraísse e fruísse de todas as concessões possíveis, encampando e tirando novas consequências de projetos reformistas, numa especial consideração com o que denominava "conquistas parciais"458.

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Sylvia Malatesta das Neves pontua que é justamente a ambiguidade do Direito do Trabalho que o tornaria peculiar na disputa e na definição da correlação de forças entre classes sociais, sobretudo em um contexto de flexibilização e precarização. É que, por mais que o Direito do Trabalho inserido num regime capitalista se preste a legitimar esse mesmo sistema (se renovando em função dos novos contextos de produção a serem legitimados), ele ostenta a capacidade de levar a cabo melhorias nas condições de vida da classe trabalhadora e de contribuir no processo de contestação das desigualdades459.

Assim, o desenvolvimento, dentro das estruturas do capitalismo, de mecanismos sociais e institucionais que permitam efetivar essa normatividade reproduz as contradições já vigentes no Direito do Trabalho e coloca agentes estatais e sujeitos envolvidos nas relações sociais de produção no impasse entre conformar-se às estruturas de reprodução do capital e garantir seu funcionamento, ou efetivar o comando insurgente do Direito do Trabalho, cujo reconhecimento já é fruto de concessões de classe460.

É dizer: a normatividade essencialmente contraditória do Direito do Trabalho, mesmo após reconhecida por instrumentos legais e constitucionais, encontra na realidade concreta das relações de trabalho um novo terreno de disputa pela sua efetividade (ou inefetividade), que compõe o contexto do que mais amplamente se denomina regulação social do trabalho. Nesse contexto, diversos sujeitos sociais e estatais se contrapõem, operando também as contradições dos seus papéis e de suas demandas de conformação ao pensamento hegemônico, de modo a produzir uma regulação concreta que se caracteriza como significativamente distante daquela que fora pactuada por meio da normatização.

Cardoso e Lage pontuam que é da natureza do Direito do Trabalho ser constantemente "testado" pelos agentes de produção, capital e trabalho, em sua luta pela riqueza socialmente produzida, característica que implica a existência de um ambiente espaço-temporal de disputa, "múltiplo em sua distribuição de recursos e nos resultados possíveis das ações normatizadas" 461. Nesse ambiente, em que a mera previsão da legislação trabalhista não se confunde com a faticidade da referida normatividade, haveria uma efetividade seletiva e arbitrária do direito positivado462.

Essa conduta de desafiar a legislação posta pode ser identificada, no caso da pesquisa, tanto no desenvolvimento de novas estratégias contratuais e de gestão do tempo, do engajamento e da remuneração do trabalho, que não dialogam com os pressupostos

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e parâmetros da normatividade posta, como no aberto e direto descumprimento de comandos legislativos aplicáveis.

Como visto no Capítulo I, há na ideia de efetivação da legislação trabalhista brasileira um importante registro do papel do Estado, que é lido, inclusive nos estudos acadêmicos, como depositário maior da missão de conferir facticidade às normas conquistadas pela classe trabalhadora, tendo em vista a prevalência, até então, do modelo legislado, a noção de hipossuficiência do trabalhador e o caráter limitado da tradição sindical corporativa. A perspectiva constitucionalizada do Direito Coletivo do Trabalho, todavia, deposita também no sindicalismo o horizonte de uma atuação assertiva, seja na reivindicação de novos direitos, mas também na cobrança do cumprimento daqueles já positivados, municiando os sindicatos de legitimidade ampla para tanto...

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