Diálogos nas Fronteiras Disciplinares: as aventuras do trabalho antropológico

AutorMargarete Fagundes Nunes
CargoDoutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (2009). Professora e pesquisadora da Universidade Feevale/RS
Páginas186-206

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Diálogos nas Fronteiras Disciplinares: as aventuras do trabalho antropológico1

Margarete Fagundes Nunes2

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INTRODUÇÃO

Proponho neste ensaio uma reflexão sobre a relação da antropologia com as chamadas Humanidades, tendo com foco principal a proposta interpretativista de Clifford Geertz. Porém, o eixo dessa reflexão não reside na exploração de uma disciplina em particular, mas nos desdobramentos de uma concepção de antropologia que tem como parâmetro as relações localizadas no âmbito das Humanidades.3 Em alguns momentos, não deixo de pontuar outros caminhos possíveis, ciente da complexidade deste debate no interior da antropologia, que vem sendo moldado por um questionamento permanente acerca dos critérios balizadores de uma identidade disciplinar e sobre os limites dos diálogos construídos entre as fronteiras disciplinares sejam estes edificados dentro ou fora das Ciências Humanas e das Humanidades.

Apoiada pela análise de Roberto Cardoso de Oliveira (2000), faço um primeiro movimento em direção à gênese de nossa matriz disciplinar, na tentativa de localizar no tempo e no espaço aqueles elementos definidores de um objeto e de um campo de atuação para os antropólogos não esquecendo que alguns vêm, num primeiro momento, de uma formação nas chamadas “ciências da natureza”.4 O segundo movimento busca identificar as transformações ocorridas em torno da definição desse objeto e as novas exigências teóricometodológicas que daí decorrem, considerandose tanto as mudanças geradas a partir do objeto, quanto aquelas questionadoras da posição do sujeito que olha. Neste exercício, procuro não perder de vista as diferentes perspectivas de uma antropologia que se espraia para além dos centros irradiadores, alargando suas possibilidades de análise a partir do desenvolvimento das antropologias periféricas (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000). Em um terceiro movimento, fixo o olhar mais atentamente sobre a antropologia

Boas em física e geografia.

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interpretativa que, ao trazer em seu bojo uma nova proposta de conceituação de Cultura, propõe um lugar para a antropologia no âmago das Humanidades, abrindo espaço para a ascensão de outras abordagens na combinação das fronteiras disciplinares. Por último, à luz desse conjunto de reflexões, procuro situar algumas questões sobre o fazer antropológico contemporâneo no que se refere à prática etnográfica e às exigências para se pensar a diversidade humana no cenário de um mundo entrecortado por um novo discurso hegemônico de pretensão globalizante, que vem exigindo do conjunto das Ciências Sociais e Humanas e, por extensão, das Humanidades, abordagens mais integradas na construção de respostas aos anseios e conflitos inerentes ao nosso tempo.

1 A DEFINIÇÃO DO OBJETO E A CONSTRUÇÃO DE UM MÉTODO DE INVESTIGAÇÃO

É importante lembrar que os primeiros antropólogos expoentes dos paradigmas fundadores das antropologias centrais (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000)5 estavam mobilizados para o encontro com um “outro” distante, “exótico”, em geral localizado alémmar, demarcando as fronteiras da disciplina nascente em torno dos chamados “povos primitivos”.6 Essa característica irá se alterar, sobretudo, nas décadas de 50 e 60 do século XX, quando os antropólogos veemse, então, envolvidos em acalorados debates sobre o futuro da antropologia frente à crescente ameaça do desaparecimento das sociedades primitivas. Naquela ocasião, Claude LéviStrauss já alertava para a emergência dos novos desvios diferenciais e para a condição permanente da antropologia como ciência intersticial devotada ao estudo da diversidade humana, independente do contexto em que essa venha a se manifestar (LÉVISTRAUSS, 1962; 1984).

Latina por sua concentração nos limites dos territórios nacionais e priorização de temas nacionais, em contraste com a tradição das antropologias centrais. Cabe aqui a indagação sobre o motivo dos antropólogos latinoamericanos permanecerem tão comprometidos com a reprodução da história mítica das antropologias centrais, que muitas vezes exclui a contribuição das antropologias produzidas fora desse eixo. Utilizo a classificação proposta por Cardoso de Oliveira sobre as produções antropológicas, no entanto, faço a ressalva de que em virtude da importância que os antropólogos concedem ao mundo do simbólico, talvez as expressões centrais e periféricas não sejam as mais adequadas para representar essa diversidade, dados os múltiplos sentidos que carregam.

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Se o final do século XIX e o início do século XX viram o despontar de uma disciplina que firmou seus primeiros alicerces em torno de um objeto particular, as chamadas “sociedades tradicionais” ou “primitivas”, era preciso, ainda, aliar a essa proposta um método científico de investigação que fosse condizente com o tamanho do empreendimento no qual se viram envolvidos os primeiros pesquisadores: a tentativa de explicar a vida humana na sua “totalidade”.7 Temse, então, a invenção da etnografia como o método privilegiado de coleta de dados e como atividade demarcadora de uma experiência.

Antropólogos como Alfred RadcliffeBrown e Malinowski ligaram à concepção de suas etnografias abordagens de investigação análogas às das Ciências Naturais. RadcliffeBrown (1989) utilizouse dos conceitos de função, processo e estrutura nas ciências sociais destacando a relevância das analogias com a vida orgânica. Da mesma forma, Malinowski (1976) viuse incumbido da tarefa de construir um método científico eficaz, praticado por cientista especializado e devidamente treinado para separar dos dados brutos da observação as suas próprias inferências.8 Apesar de Malinowski aproximarse do universo das Ciências Naturais, José Jorge de Carvalho (1992), em seu texto “Saber Acadêmico e Experiência Iniciática”, ressalta que Malinowski trouxe resultados concretos para a valoração positiva da figura do antropólogo no interior das Ciências Humanas: “a partir do seu êxito ficou definido então que o antropólogo é aquele que faz a viagem odisséica de afastamento máximo da origem na expectativa de um retorno sábio” (CARVALHO,1992, p.5).

No decorrer do século XX, as possibilidades de criação de novos objetos ampliamse, mas o método de um trabalho de campo intenso e prolongado no interior do universo pesquisado seja cultural e geograficamente próximo ou distante mantémse como uma característica importante na definição do métier dos antropólogos.9 O fundamental na pesquisa de campo é menos o que vai ser revelado ao pesquisador, mas o que vai ser revelado no pesquisador (PEIRANO,

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1995, p.23). AnneChristine Taylor (2002) recorda que a partir dos ensinamentos de Malinowski nos anos 30 do século XX, a observação participante desponta como uma necessidade metodológica: o antropólogo coloca seu corpo e sua pessoa a serviço da aprendizagem. A imersão prolongada em campo pretende eliminar os automatismos corporais e fazer emergir os afastamentos diferenciais. O antropólogo é aquele pesquisador treinado para a percepção da diferença.10

No entanto, não se pode esquecer que a etnografia é o resultado da experiência do pesquisador de campo aliada a sua preparação no universo de uma tradição teóricodisciplinar. Se o trabalho de campo pode ser considerado um rito de passagem, como indica Roberto Da Matta (1981), há um elemento a mais a ser conquistado pelos neófitos para a ascensão a uma condição pósliminar: a apreensão e o conhecimento de toda uma tradição teórica da disciplina, a devida apresentação àqueles que Geertz (2002)11 denomina autoresescritores, fundadores de discursividade na antropologia.

Até mesmo aqueles antropólogos que se mantiveram mais distantes da prática etnográfica vistos mais como teóricos do que etnógrafos não só a defenderam em várias circunstâncias como utilizaram o conjunto de informações dos etnógrafos para a construção de suas teorias. O “mito malinowskiano” do trabalho de campo espraiouse e fixou os pilares de uma suposta identidade antropológica. Não é de se estranhar, portanto, que os antropólogos pósmodernos - ávidos por uma crítica cultural que escancare as relações de poder e dominação presentes nos encontros coloniais - massacrem o mito fundador, denunciando, assim, a autoridade etnográfica. O caminho escolhido para se tecer essa crítica encontra eco na escrita etnográfica. A concepção corrente é de que por trás da escrita, ou por meio dela, podem se enxergar as tantas contradições existentes nas formas de representação da alteridade e as assimetrias de poder entre saberes distintos. Para James Clifford, as etnografias carregam histórias sobre algo. É este aspecto narrativo que faz delas gêneros literários; a escrita etnográfica “vista como inscrição ou textualização encena uma alegoria ocidental redentora” (1998, p.65). Neste caso, o

10 Taylor (2002) está interessada nos elementos cognitivos dessa aprendizagem. Sendo assim, considera que o estabelecimento dos invariantes e da variabilidade na antropologia não está dissociado de um estilo de prática científica.

Geertz (2002) faz alusão à discussão de Michel Foucault sobre as relações de poder imbricadas na construção da“autoria”, identificando quem são os “autoresescritores” na antropologia.

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reconhecimento da alegoria por parte dos antropólogos seria o primeiro passo para o necessário questionamento das dimensões éticas e políticas das etnografias.

De repente, a escrita transformouse em panacéia para todos os dilemas do trabalho antropológico. Apesar de o “fervilhar” das últimas décadas, não se pode dizer que a preocupação com a escrita ...

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