Exclusão e diferença nas políticas públicas de radiodifusão comunitária no Brasil: possibilidades e limites a partir do pensamento de Jürgen Habermas

AutorDaniel Augusto Vila-Nova Gomes
Páginas256-277

Daniel Augusto Vila-Nova Gomes. Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília-UnB; Mestrando em “Direito, Estado e Constituição” no Programa de Mestrado da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD/UnB) na Linha de Pesquisa Políticas Públicas e Democracia; Professor nas disciplinas Noções de Direito, Introdução ao Direito I e Teoria Geral do Direito Público na UnB, no período compreendido entre setembro de 2005 e julho de 2006; Pesquisador do Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito; Membro do Grupo de Estudos em Direito das Telecomunicações – GETEL/UnB; e Assessor Jurídico do Ministro Gilmar Ferreira Mendes no Supremo Tribunal Federal (STF).

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Exclusão nas políticas públicas de radiodifusão comunitária no Brasil

Como uma onda no ar1, ecoam vozes que clamam por políticas públicas mais legítimas para a regulação das rádios comunitárias no Brasil. Na prática, a grande maioria dos pedidos de autorização para a exploração desse serviço de inegável relevância pública é arquivada ou obstada por trâmites administrativos perante o Ministério das Comunicações (MINICOM), os quais chegam a durar até 8 anos.2

No dia 1° de dezembro de 2005, realizou-se audiência pública para discutir os rumos da legislação de regência dessa modalidade de radiodifusão. Nessa oportunidade, além do lançamento de perspectivas para o futuro da radiodifusão comunitária, o debate público norteou-se pela necessidade de um novo marco regulatório. Tratou-se, portanto, de uma reflexão que a comunidade política brasileira tem realizado para estabelecer diretrizes adequadas para a implementação de políticas públicas no âmbito da comunicação como um direito humano.3

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Recente reportagem da Carta Capital, datada de 09 de agosto de 2006, denuncia experiências e dificuldades comuns às rádios comunitárias do país. Entre a clandestinidade e a perda de identidade decorrente do risco de apropriação indevida por partidos políticos4, a discussão sobre os problemas técnicos, burocráticos, criminais e legislativos consiste em primeiro passo para a construção de efetivo controle normativo da sociedade e do Estado brasileiro quanto às políticas públicas destinadas ao setor. Em última instância, este artigo propõe a idéia de controle normativo como uma alternativa teórica que, ancorada na noção habermasiana de esfera pública, busca lidar com o papel desempenhado pelos múltiplos sujeitos envolvidos (Estado, agências, cidadãos, empresas, corporações, permissionários, concessionários, comunidades locais, regionais, nacionais e transnacionais, entidades do terceiro setor etc.) para o controle jurídico do acesso, participação e distribuição dos benefícios individuais, coletivos e sociais relacionados à exploração das atividades de radiodifusão comunitária.

De outro lado, os primeiros estudos nessa área já apontam que pequeno número de grupos religiosos e oligarquias familiares (muitas vezes ligados a atuais exercentes de mandatos parlamentares) são detentores da grande maioria das concessões e autorizações relativas aos meios de comunicação de massa. Para Célia Stadnick, esse fenômeno de exclusão poderia ser denominado “coronelismo eletrônico”.5

Embora as primeiras experiências da radiodifusão comunitária brasileira possam ser identificadas desde 1970, as rádios comunitárias apenas se organizaram politicamente durante a década de 1990. O “movimento das rádios comunitárias”6 passou a pautar-se por uma política de inclusão e deliberação de medidas mais democráticas. Somente a partir dePage 258 então, tornou-se possível falar em uma espécie de “reforma agrária do ar”7 – uma pauta de reivindicações que, para não se tornar obsoleta, precisa de urgente adaptação aos efeitos da convergência tecnológica das comunicações e da adoção de novo padrão digital para o rádio e a televisão.

Nesse cenário de exclusão, inúmeras críticas têm sido realizadas desde a edição da Lei n° 9.612/1998, a qual instituiu o serviço de radiodifusão comunitária no Brasil8. O objetivo dessa legislação era atender o grande número de pedidos de autorização formulados ao MINICOM para a implantação de emissoras de baixa potência. A partir desse marco legal, fundava-se um regime de autorizações de reduzida área de cobertura para o atendimento de comunidades envolvidas no planejamento e na transmissão de programas que fossem de seu interesse. A lei não permite, ademais, que a entidade ou a comunidade autorizada para a exploração dessa modalidade de atividade radiodifusora obtenha quaisquer fins lucrativos.

Como se percebe, porém, os resultados alcançados por esse modelo de autorização previsto na lei indicam um déficit de legitimidade nas políticas públicas desse setor. Se, de um lado, a burocracia para se obter uma autorização acaba se tornando um atrativo para a ilegalidade, de outro, são inegáveis as influências causadas pela concentração do mercado brasileiro de comunicações.9 Para aprofundar os dilemas de implementação de políticas públicas nessa área, é pertinente analisar outro episódio relativo ao processamento de pedido de outorga de autorização para exploração de radiodifusão comunitária.

A Associação das Mulheres de Juazeiro do Norte (AMUJUN) teve seu pedido indeferido pelo Ministério das Comunicações (MINICOM). Nesse caso, a solicitação não foi atendida sob o fundamento de que a AMUJUN promoveria “discriminação sexual”. Para embasar essa decisão administrativa, o MINICOM invocou o inciso I, do artigo 4°, da Lei n° 9.612/1998. Tal dispositivo enuncia, em linhas gerais, que as emissoras atenderão, em sua programação, à diretriz legal da “não discriminação de raça, religião, sexo, preferências sexuais, convicções político-ideológico-partidárias e condição social nas relaçõesPage 259 comunitárias”. A negativa do pedido de autorização da AMUJUN foi determinada, portanto, sob o argumento de que as políticas públicas de radiodifusão comunitária deveriam evitar a promoção de atividade discriminatória. Como resultado, esse processo administrativo foi arquivado em 27 de julho de 2001.10

Antes de abordar algumas das imprecisões jurídico-constitucionais que a situação concreta de preterição pode denotar, é necessário reconhecer as rádios comunitárias como espaços autônomos e privilegiados para a construção democrática da cidadania. Destarte, a partir do momento em que uma comunidade tenha possibilidades de exercer legitimamente a atividade, torna-se possível a participação de cada um dos indivíduos na elaboração coletiva da forma e do conteúdo da programação a ser veiculada.

A rigor, essas experiências, quando bem sucedidas, podem constituir verdadeiros instrumentos de problematização de temas envolvidos com a formação da opinião e da vontade política coletivamente vinculante, tais como: a discussão de excessos e déficits nas relações de trabalho, nas campanhas eleitorais, na fiscalização da prestação de serviços públicos e em diversas áreas de formulação de políticas públicas, por exemplo, saúde e educação. Em outras palavras, a radiodifusão comunitária exercita os limites e as possibilidades discursivas daquilo que, segundo Jürgen Habermas, a historiografia e as teorias social e jurídica contemporâneas denominam “esfera pública”.

É exatamente nesse contexto de deliberação sobre alternativas para a crescente exclusão promovida pelo atual modelo brasileiro de radiodifusão comunitária que este artigo pretende realizar breves considerações. Assim, com base nas repercussões históricas e sociológicas da evolução da noção de esfera pública no pensamento de Habermas (Seção 1), parece-nos pertinente investigar os limites e possibilidades de emancipação política dessa categoria histórico-social, de considerável repercussão no campo dos direitos, em especial, quanto à liberdade de expressão e à prerrogativa de acesso público aos meios de comunicação de massa.

Para essa análise, o exemplo concreto da AMUJUN é duplamente instigante. Ao mesmo tempo em que permite uma análise das políticas públicas no setor de radiodifusão comunitária no Brasil, a decisão administrativa do MINICOM revela algumas das armadilhas discursivas que, uma vez apropriadas, podem ser utilizadas como impedimento para a inclusão da mulher (das outras cidadãs) nas possibilidades de emancipação política no interior da esfera pública (Seções 2 e 3). A expectativa desta investigação é contribuir para oPage 260 reconhecimento de que a questão das políticas públicas destinadas às rádios comunitárias pode envolver, além da luta e da conquista de direitos de liberdade de expressão e igualdade de gêneros, a construção democrática da cidadania e a emancipação política de identidades sociais coletivas.

Cidadania, democracia e esfera pública na obra de Jürgen Habermas

Ao iniciar a reflexão acerca dos limites e das possibilidades democráticas de emancipação política cidadã, deve-se destacar que a distinção entre esfera pública e esfera privada não é linear no pensamento de Jürgen Habermas. Na primeira formulação dessa diferenciação, a obra Mudança Estrutural na Esfera Pública (1961)11 denota a alteração da função política e social da esfera pública burguesa em razão de diversas transformações na estrutura da sociedade, tais como: a polarização da esfera social e da esfera íntima, caracterizada pelo surgimento novas relações familiares e de trabalho; a transição do público pensador de cultura ao público consumidor de cultura, em que passam a prevalecer mídias e públicos de consumo massificado no mercado cultural; a decadência da esfera pública burguesa, marcada eminentemente pelas influências que a substituição do jornalismo crítico pelo...

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