Entre dignidade da pessoa humana, nudges e extrafiscalidade: a convivência da liberdade, da igualdade e da solidariedade

AutorRicardo Siqueira de Carvalho
Ocupação do AutorMestre em Direito Tributário pela Universidade Federal do Paraná. Advogado
Páginas901-940
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ENTRE DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA,
NUDGES
E EXTRAFISCALIDADE: A
CONVIVÊNCIA DA LIBERDADE, DA IGUALDADE
E DA SOLIDARIEDADE
Ricardo Siqueira de Carvalho
Mestre em Direito Tributário pela Universidade Federal do Pa-
raná. Advogado.
Quem quer a liberdade? A liberdade exige decisões pessoais para
todos os dilemas diários: saio, não saio, vou, fico, o que é que eles
estão querendo dizer com isso?, como é que eu devo agir em função
disso? A cada ato, a cada desastre, cada notícia, corresponde uma
atitude definida e um esforço para o qual o ser normal não foi ade-
quado. Só um tarado (liberal) aprecia a liberdade total. O homem
médio prefere se entregar a prepostos, ama despachantes, obedece
a mestres, serve a diretores, mitifica líderes. A própria constitui-
ção humana está talhada para a limitação. É evidente que Deus
fez o homem com a cabeça maior do que o corpo para ele não poder
passar por entre as grades.
(Millôr)
1
1. Millôr FERNANDES, O livro vermelho dos pensamentos de Millôr, p. 47.
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ENSAIOS EM HOMENAGEM AO PROFESSOR JOSÉ ROBERTO VIEIRA
Sumário: 1. Pensando rápido e devagar – 2. A dignidade na visão de
Daniel Sarmento: a autonomia e o paternalismo libertário – 3. A neu-
tralidade do Estado e a tributação como instrumento – 4. A extrafiscali-
dade – 5. A tensão entre a extrafiscalidade e a capacidade contributiva
– 6. Controle da extrafiscalidade – 7. Conclusão – 8. Algumas palavras
sobre o Homenageado – Referências.
1. Pensando rápido e devagar
A irônica reflexão de Millôr sobre os reais anseios de li-
berdade do homem comum é instigante. Muito embora osten-
temos com ardor – e razão – a bandeira da liberdade, há de se
reconhecer que, às vezes, não sabemos o que fazer com ela.
Tomar decisões é uma atitude de esforço, ainda mais diante
da complexa e agitada vida moderna. O “ser normal não foi
adequado” para decidir sobre tudo, muito menos para decidir
bem sobre tudo – razão pela qual, aliás, no exercício de nossa
autonomia, não é incomum fazermos escolhas que, no fim das
contas, são inconvenientes ou nocivas a nós mesmos. A zom-
baria de Millôr é certeira: a própria constituição humana está
talhada para a limitação. E o problema parece estar de fato
na nossa cabeça. Mais precisamente, dentro dela: a culpa é da
nossa forma de pensar.
É graças ao estudo do funcionamento do pensamento
humano que o professor israelense Daniel KAHNEMAN foi
laureado com o prêmio Nobel de Economia em 2002. O fruto
de suas investigações no campo da psicologia e da economia
comportamental ao longo da vida, junto de seu companhei-
ro de trabalho, Amos TVERSKY, está concentrado na obra
Thinking, Fast and Slow”, que rapidamente se tornou um su-
cesso de vendas.2
Em linhas gerais, KAHNEMAN ensina ao leitor que a
forma de pensar do ser humano pode ser apresentada, para
fins didáticos, como dois sistemas que interagem entre si, o
2. Daniel KAHNEMAN, Thinking, Fast and Slow.
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ENSAIOS EM HOMENAGEM AO PROFESSOR JOSÉ ROBERTO VIEIRA
“Sistema 1” e o “Sistema 2”. Enquanto o “Sistema 1”, que tra-
balha sem esforço, é o responsável por fornecer respostas in-
tuitivas e imediatas, que alimentam as crenças e escolhas do
“Sistema 2”, o “Sistema 2” é responsável pelo raciocínio mais
lento e demorado, que tanto monitora o “Sistema 1” quanto
formula pensamentos concatenados, exigindo concentração e
empenho.3 Daí o título do livro, “pensando, rápido e devagar”.
Ao longo do livro, KAHNEMAN mostra que, apesar da
boa e tranquila interação entre os sistemas, o “Sistema 1”
pode fornecer respostas equivocadas ou tendenciosas, as
quais, encampadas “preguiçosamente” pelo “Sistema 2”, po-
dem dar margem a julgamentos e escolhas erradas ou ruins.
O ser humano real é suscetível e, de certo modo, incapaz de
resistir a certas distorções decorrentes das interações entre
os sistemas.4
3. Ibidem, p. 21.
4. Ibidem, p. 411. Vários são os exemplos de mecanismos que podem vir a influen-
ciar nosso julgamento e escolhas. Pode-se citar o “priming” (a influência que um
determinado evento anterior, mesmo aparentemente irrelevante, pode ter sobre
um posterior, em razão da associação de ideias feitas pela mente – ibidem, p. 52 e
ss.), ou o “framing effect” (maneiras diferentes de se apresentar uma informação via
de regra evocam diferentes emoções – ibidem, p. 363 e ss.). Sobre o “framing effect”,
aliás, o autor reproduz um real, curioso e ilustrativo exemplo relacionado ao direito
tributário, extraído da obra de Thomas SCHELLING, “Choice and Consequence”: o
professor pergunta a seus alunos da faculdade de Direito: “vamos supor que um
sistema tributário permita a dedução de um valor fixo e determinado do imposto de
renda a pagar por cada filho que um casal possua, valor este que independe da ren-
da auferida por esse casal. Pergunto-lhes: deve a dedução por criança ser mais am-
pla para o rico do que para o pobre?” A classe responde que não: favorecer o rico
por meio de uma dedução mais ampla do que a do pobre seria inaceitável. O profes-
sor, então, dirige-se novamente à classe: “Supondo, agora, que o sistema tributário
passe a considerar como o padrão típico da sociedade a existência de um casal com
dois filhos. Nessa perspectiva, famílias com menos do que o padrão legal deveriam
pagar um adicional por filho. Questiono-lhes: deve um casal pobre e sem filhos pa-
gar um adicional tão gravoso quanto o de um casal rico sem filhos?” Novamente, a
classe rejeita com veemência a formulação do mestre, apontando a injustiça da si-
tuação. O professor intervém: “Ora, vocês não podem, sob o ponto de vista lógico,
rejeitar ambas as proposições. Se vocês mantiverem a posição quanto à primeira
indagação que lhes fiz, defendendo que o pobre deve receber uma dedução igual ou
até mais benéfica do que a do rico por filho, logo vocês obrigatoriamente devem
querer que o pobre pague ao menos o mesmo adicional que o rico por não ter ne-
nhum filho”. De fato, quando paramos para refletir sobre a questão, ela não admite

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