Dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico

AutorRafael Marinangelo
Páginas1-25
CAPÍTULO I
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
NO ORDENAMENTO JURÍDICO
A dignidade da pessoa humana é o eixo no qual gravita todo o ordenamento
jurídico. Não foi sem motivo, portanto, sua inserção topográf‌ica no artigo inaugural
Toda a ideia de reparação do dano não patrimonial, da evolução do contrato
como instrumento de satisfação dos interesses materiais e imateriais da pessoa, a
concepção de dano social e a justif‌icativa para sugerirmos, por meio do presente tra-
balho, a aplicabilidade da indenização punitiva passa, portanto, pelo conhecimento
e ref‌lexão desse importante valor, norma e pressuposto constitucional.
Por esse motivo, a ele dedicaremos este capítulo o qual se inicia com um breve
escorço histórico, para, então, adentrar em seu substrato jurídico; passar pela digni-
dade no exercício dos papéis de fundamento jurídico do ordenamento, postulado e
norma; relacionar a dignidade da pessoa humana com os direitos fundamentais e os
direitos da personalidade, e abordar os direitos da personalidade da pessoa jurídica.
Com esse caminho, procuraremos demonstrar a importância, o sentido e o al-
cance da dignidade como elemento fundante e justif‌icador do dano extrapatrimonial
relacionado à pessoa humana.
1.1 BREVE PANORAMA HISTÓRICO
O conceito de dignidade da pessoa humana, tal como o conhecemos hoje, é
fruto da construção f‌ilosóf‌ica e política de reconhecimento do ser humano como
pessoa autônoma e responsável, inserida num contexto social ao qual está intima
e indissociavelmente atrelada. É, ainda, produto da convicção de que a pessoa hu-
mana constitui ser singular, pertencente ao gênero da humanidade, logo, capaz de
interagir, dialogar e amar.1 Enf‌im, é resultado do reconhecimento da indispensável
tutela contra toda e qualquer ameaça, agressão ou violação de sua humanidade.
O processo histórico envolvido na busca e alcance dessa compreensão da dig-
nidade da pessoa humana – ainda inacabada, diga-se – não foi simples e nem sequer
1. A esse respeito conf‌ira Antônio Junqueira de Azevedo. Caracterização Jurídica da Dignidade da pessoa
humana. RT 797. ano 91. p. 11-26. Março de 2002.
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INDENIZAÇÃO PUNITIVA E O DANO EXTRAPATRIMONIAL NA DISCIPLINA DOS CONTRATOS • RAFAEL MARINANGELO
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seguiu caminho de transformação linear, pois seu percurso foi marcado por muitos
avanços e retrocessos.2
A despeito da ausência de linearidade evolutiva, para f‌ins didáticos, é comum
a menção a três momentos evolutivos cruciais para o progresso do arquétipo de
dignidade humana: o Cristianismo, o Kantismo e, mais recentemente, a Segunda
Guerra Mundial.
Nossa análise começa no pensamento f‌ilosóf‌ico e político da antiguidade clás-
sica, no qual a sobredita dignidade estava relacionada à posição social ocupada pelo
indivíduo e ao seu grau de reconhecimento pela sociedade. Nessa época, a dignidade
era considerada como fator de posição hierárquica, ensejando a possibilidade de
modulação de grau de acordo com o conceito ou a reputação ostentada pelo sujeito
frente a seus pares.3 Por esse motivo, era comum o indivíduo pertencente à casta
mais nobre ser considerado mais digno do que o ocupante de uma casta inferior,
bem como a mulher não gozar da mesma dignidade que o homem4.
Com a vertente de pensamento estoico, aquela concepção ultrajante é mitiga-
da, deixando de ater-se unicamente à condição social do indivíduo para abranger,
também, a concepção de atributo inerente ao ser humano. Logo, à f‌igura corrente de
dignidade acresce-se uma conotação moral, relacionada ao “direito natural”, pres-
crevendo aos seres humanos o dever de respeitarem-se e de não prejudicarem uns
aos outros. É o início de uma nova abordagem do signif‌icado da dignidade da pessoa
humana, a qual, porém, não conseguiu fecundar e gerar as consequências desejadas.
Foi o Cristianismo, promovido à condição de religião of‌icial do Império, o
responsável por atribuir ao tema os contornos mais próximos com os vigentes na
atualidade. Consoante a concepção Cristã, o fato de o ser humano ter sido criado
à imagem e semelhança de Deus permite considerar a dignidade como elemento
intrínseco de sua própria humanidade, pois, ao contrário do que ocorre com os de-
mais seres vivos, foi agraciado com liberdade e inteligência. Essa noção permaneceu
2. Como alerta Michel Villey (A formação do pensamento jurídico moderno. Trad. Claudia Berliner, São Paulo:
Martins Fontes, 2005, p. 450-451), os eventos não percorrem um caminho evolutivo sem percalços.
Conf‌ira-se, a respeito, a lição do mestre Francês: “Nosso atual método histórico é escravo demais dos
preconceitos que, desde o século XVIII, a opinião moderna alimenta em relação à ‘evolução da humanidade’
e seu pretenso ‘progresso’. Hoje, fazemos história época por época, como se tudo dependesse do tempo. E
aplicamos tão bem essa grade à nossa ciência do passado que chegamos a f‌icar convencidos de que tudo
evoluiu. Quando o marxismo, por exemplo, proclama que ‘o ser precede a consciência’, imaginamos que
isso é uma descoberta nova, um ‘progresso da mente humana’. Provavelmente, é mais verdadeiro af‌irmar
que todas as grandes teses f‌ilosóf‌icas transcendem a cronologia e que existem desde sempre, envolvidas
num perpétuo combate ao longo dos séculos.”
3. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de
1988. 8. ed. rev. atual. e ampl. Livraria do Advogado Editora. Porto Alegre: 2010, p. 32.
4. Sobre a compreensão da dignidade como meio de distinção hierárquica da pessoa na sociedade, convém
a consulta a: Enciclopédia Filosóf‌ica, Dignità Umana. Disponível em: www.unipa.it/viola/voce_dignita.
pdf. Acesso em: 20.02.2014. Vide, ainda, AZZONI, Gianpaolo, Dignità umana e diritto privato. Disponível
em: blog.centrodietica.it/wp-content/uploads/2013/4/dignita-umana-seconde-bozze.pdf. Acesso em:
20.02.2014.
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