A dignidade da mulher enquanto pessoa humana e o caso Maria da Penha

AutorJuliana Oliveira Domingues
CargoDoutoranda em Direito / Relações Econômicas Internacionais (PUC/SP)
Páginas99-119

Juliana Oliveira Domingues. Doutoranda em Direito / Relações Econômicas Internacionais (PUC/SP). Mestre em Direito / Relações Internacionais (UFSC). Professora de Direito Internacional Privado e de Política Internacional da Faculdade Santa Marcelina e do MBA de Comércio Exterior da Universidade Nove de Julho. Sócia-Fundadora do INPRI. Advogada (Magalhães, Ferraz e Nery Advocacia).

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“O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los”.

Norberto Bobbio

Siglas e abreviaturas utilizadas:

CADH - Convenção Americana sobre Direitos Humanos

CEJIL - Centro pela Justiça e o Direito Internacional

CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos

CLADEM - Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres

CtIADH - Corte Interamericana de Direitos Humanos

OEA - Organização dos Estados Americanos

Introdução

O presente estudo teve como objetivo traçar um breve panorama da situação da mulher no que concerne à proteção da sua dignidade enquanto pessoa humana. Nesse sentido, primeiramente procurou-se fazer um breve histórico sobre o estabelecimento de convenções e outros instrumentos internacionais de proteção à dignidade da mulher.

Em complemento, para apontar os grandes desafios enfrentados na atualidade para a efetiva proteção dos direitos da mulher, alguns dados sobre a violência de gênero foram indicados, com base em fontes de pesquisas, os quais claramente demonstram que a violência contra a mulher ocorre em diversos segmentos sociais e independe da formação, classe social, etnia, etc., tanto da vitima quanto do seu agressor.

Conforme se verá a seguir um dos grandes problemas enfrentados refere-se à violência doméstica sofrida pelas mulheres. Nesse contexto, foi trazido o importante caso da brasileira Maria da Penha Fernandes que diante da morosidade e da impunidade foi levado à análise da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, culminando com a condenação do Estado Brasileiro.

Nesse estudo, esse caso tem especial relevância, uma vez que também fomentou a elaboração da Lei n.º11.340, conhecida como “Lei Maria da Penha” em homenagem a essa mulher que virou um símbolo da luta contra a violência doméstica. Desse modo, essa inovação legal representa um marco no Brasil no que concerne à defesa dos direitos humanos e da dignidade da mulher merecendo, por fim, alguns breves comentários sobre os seus aspectos principais e perspectivas.

1. Breve histórico do estabelecimento de convenções e outros instrumentos internacionais de proteção à dignidade da mulher

No que concerne aos direitos humanos da mulher, cabe ressaltar que os instrumentos internacionais são muito relevantes, uma vez que evidentemente constituem fonte para os direitos humanos no direito interno. Com base nosPage 101 documentos e convenções internacionais os países buscam - ou deveriam buscar -aprimorar o seu ordenamento jurídico interno. Ao mesmo tempo estes mecanismos têm um importante papel no cenário internacional por que também permitem que haja uma responsabilização dos Estados por eventuais violações dos direitos humanos.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem é considerada como a primeira fundamentação teórica dos direitos humanos como um todo, inclusive no que concerne aos direitos humanos da mulher1. Desse modo, ela foi um marco para o desenvolvimento e elaboração de outras declarações e documentos específicos que procuraram defender a figura da mulher em respeito a sua dignidade enquanto pessoa humana2.

De acordo com BOBBIO: “A Declaração Universal contém em germe a síntese de um movimento dialético, que começa pela universalização abstrata dos direitos naturais, transfigura-se na particularidade concreta dos direitos positivos, e termina na universalidade não mais abstrata, mas também ela concreta, dos direitos positivos universais”.3

Indubitavelmente a Declaração passou a fortalecer o entendimento de que os direitos humanos deveriam transcender para além das fronteiras meramente nacionais, uma vez que os preceitos ali contidos resultam da universalidade dos direitos humanos protegidos internacionalmente.

Assim, a Declaração também atingiu a mulher enquanto pessoa humana. De acordo com as professoras e pesquisados PIOVESAN e IKAWA: “Em princípio, o processoPage 102 de internacionalização dos direitos da mulher se inicia com o processo de internacionalização dos direitos humanos. Em outras palavras, o reconhecimento de que o indivíduo é titular de direitos pelo mero fato de sua humanidade, pelo mero fato de ser pessoa atinge também as mulheres4”.

Como a Declaração Universal passou a considerar os direitos humanos como indisponíveis e universais ela acabou fomentando o inicio do processo de “juridicização” dos direitos ali inseridos5.

No mesmo sentido da Declaração Universal, a Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, acabou reiterando esse entendimento ao declarar em seu parágrafo 5º que “todos os direitos humanos são universais, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e eqüitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase.” Essa Declaração foi mais especifica na questão do gênero ao colocar em seu parágrafo 18, que os direitos humanos das mulheres e das meninas são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais.

Dentre os documentos e declarações que tratam especificamente da defesa da dignidade da mulher merecem destaque, especialmente: i) a Convenção Para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (1979), ii) a Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher (1993), iii) a Convenção Interamericana Para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (1994) e, iv) a Declaração de Pequim (1995)6.

Ou seja, no panorama delineado acima, observa-se que na história da humanidade foi necessário um longo período para que as mulheres fossem reconhecidas como sujeito de direitos humanos e, mesmo com a Declaração Universal, ainda foi necessário um longo período para que outras Convenções e Declarações tratassem dessa questão especificamente. Efetivamente, apenas com a Conferência de Direitos Humanos de 1993 é que os direitos das mulheres ganharam o status de direitos humanos7.

Uma das convenções de maior destaque no que concerne aos direitos humanos das mulheres é a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, que também é conhecida como “Convenção de Belém do Pará”. Esta Convenção foi ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995, e possui foco central na questão da violência contra a mulher. Nessa Convenção o artigo 3º éPage 103 bastante relevante ao estabelecer claramente que “toda mulher tem direito a uma vida livre de violência, tanto no âmbito público como no privado”.

No artigo 4º dessa Convenção os direitos humanos das mulheres foram reconhecidos nos seguintes termos: “Artigo 4º - toda mulher tem direito ao reconhecimento, gozo, exercício e proteção de todos os direitos humanos e liberdades consagradas pelos instrumentos regionais e internacionais sobre direitos humanos. Estes direitos compreendem, entre outros: a. o direito a que se respeite sua vida; b. o direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral; c. o direito à liberdade e à segurança pessoais; d. o direito a não ser submetida à tortura; e. o direito a que se respeite a dignidade inerente à sua pessoa e que se proteja sua família; f. o direito à igualdade de proteção perante a lei e da lei; g. o direito a um recurso simples e rápido diante dos tribunais competentes, que a ampare contra atos que violem seus direitos; h. o direito à liberdade de associação; i. o direito à liberdade de professar a religião e as próprias crenças, de acordo com a lei; j. o direito de ter igualdade de acesso às funções públicas de seu país e a participar nos assuntos públicos, incluindo a tomada de decisões”.

Em que pese o reconhecimento de todos os direitos listados acima, numa lista que, vale destacar, é meramente exemplificativa, observa-se que a realidade das mulheres ainda é muito distinta. No mundo inteiro os direitos das mulheres são violados, em maior ou menor grau.

Entretanto, muitas vezes as próprias vítimas deixam de denunciar os seus agressores por diversos fatores: medo, insegurança, certeza da impunidade, vergonhas, etc. Contudo, as mulheres que são vítimas deveriam se conscientizar do papel que imprimem na sociedade e deveriam denunciar, sempre que possível, os seus agressores.

Conforme bem explica ALVES, em estudo sobre essa questão: “[...] as declarações de direitos servem como instrumento, de suporte teórico para a efetivação, in concreto, da cidadania feminina O alcance efetivo dos direitos humanos das mulheres de autogerirem suas vidas começa pela conscientização de que para transformar um mundo calcado no preconceito contra a mulher é preciso reinterpretar o mundo de outra forma. Significa dizer, não basta conscientizar os outros, faz-se indispensável a autoconscientização da própria mulher”.8

Apesar dos direitos previstos nas Convenções passarem a integrar o ordenamento jurídico Brasileiro e terem força de norma constitucional, conforme determina o artigo 5º, parágrafo 2º da CF, a experiência mostra que no Brasil - assim como em boa parte dos outros países do globo - ainda há muito a...

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