Digressoes (criticas) sobre liberdade, estado e direito em Hegel/Critical digressions on freedom, state and right in Hegel.

AutorArbia, Alexandre Aranha
  1. Introducao (ou uma justificativa)

    Uma das maiores dificuldades enfrentadas por aqueles que se arriscam a percorrer a Critica da Filosofia do Direito de Hegel (MARX, 2010), tambem conhecida por Manuscritos de Kreuznach ou simplesmente "Critica de 43", e, para alem da linguagem hegeliana empregada pelo proprio autor, compreender, afinal, do que tratam as glosas. Se e verdade que Marx toma o cuidado de reproduzir exaustivamente, em seus cadernos, as passagens que comenta, por outro, ao leitor leigo, mantem-se como obstaculo a ausencia de um entendimento do que seria a propria compreensao hegeliana do estado.

    O intuito deste artigo nao e contribuir com uma interpretacao "inovadora" dos Principios da Filosofia do Direito ou tampouco somar analise a dos comentadores de Hegel. Trata-se de um objetivo muitissimo mais modesto: produzir um "ponto de partida", uma base introdutoria simples e sumaria da concepcao hegeliana da liberdade, do estado e do direito para aqueles que pretendem se debrucar sobre os chamados "textos de 40" ou "juvenis" de Marx, em especial, sobre a "Critica de 43", que inaugura sua ruptura com as ideias do mais destacado idealista alemao.

    Neste sentido, o presente artigo busca, por uma leitura de talhe critico e tentando evitar simplismos, apresentar, de modo mais direto e sumario possivel, a ossatura do que poderiamos apontar como uma "concepcao hegeliana do estado e do direito".

  2. Do individuo ao estado: a aventura do espirito em busca de si

    A percepcao mais comum e recorrente que temos no cotidiano e a de ser o estado o fiador da sociabilidade. Seria ele um instrumento capaz de gerir a barbarie, de instituir o razoavel, de distribuir a justica e regular a economia. Ao estado se recorre quando as mediacoes civis esgotaram suas possibilidades de funcionamento. O estado seria, pois, o freio da injustica, o guardiao da equidade, o mantenedor da ordem, a salvaguarda da propriedade; em ultima instancia, o garantidor da liberdade. Que fundamentos vinculariam estado e liberdade?

    No seculo XVIII, um dos mais destacados filosofos que o ocidente ja conheceu buscou consolidar a dignidade filosofica do estado em termos bem mais apropriados e complexos. Dialogando, como era de seu costume, com amplo espectro da historia do pensamento ocidental e munido de um robusto conhecimento, nao apenas da filosofia e do pensamento politico como tambem da economia politica--ciencia em ascensao naquela quadra historica--, Hegel procurou, partindo do individuo, oferecer respostas que alcancassem os patamares mais elevados e complexos da vida social em seu conjunto. No apice da vida civilizada, como o corolario da Razao, Hegel viu o estado--e, mais precisamente, o estado prussiano de sua epoca.

    Para Hegel, o espirito (a consciencia, o pensamento), na busca por sua autorrealizacao, e o verdadeiro demiurgo do desenvolvimento das formas sociais: da subjetividade a objetividade, do individuo as instituicoes, da parte ao todo, o espirito (a razao) encontra os caminhos de sua elevacao, cumprindo seu destino teleologico imanente e irrefreavel atraves das formas, apesar das formas e ate mesmo contra elas. Abandonando as constricoes que impedem sua marcha, o espirito avanca, irrompe, transcende seu nascedouro em busca do estabelecimento objetivo; em uma Aufhebung (1) permanente, suprassume (supera e conserva) em si os momentos de seu desenvolvimento, conforma-se universalidade.

    No cerne da concepcao hegeliana, podemos localizar um vinculo indissoluvel entre liberdade e propriedade. A genese da liberdade e dada na vida civil moderna, onde o homem livre exercita sua vontade--o que significa, como condicao primeira, que e plenamente capaz de se apropriar, de se tornar proprietario. Pela propriedade, observamos a genese do direito:

    [seccion] 40 - O direito comeca por ser a existencia imediata que a si se da a liberdade de um modo tambem imediato nas formas seguintes:

    1. A posse, que e propriedade (2); aqui, a liberdade e essencialmente liberdade da vontade abstrata ou, em outros termos, de uma pessoa particular que so se relaciona consigo mesma;

    2. A pessoa que se diferencia de si se relaciona com outra pessoa e ambas so como proprietarias existem uma para a outra; a identidade delas, que existe em si (virtual), adquire a existencia pelo transito da propriedade de uma para outra, com mutuo consentimento e permanencia do comum direito. Assim se obtem o contrato;

    3. A vontade como diferenciada na relacao consigo mesma, (a) nao porque se relacione com outra pessoa, mas (b) porque e em si mesma vontade particular que se opoe ao seu ser em si e para si, constitui a injustica e o crime (HEGEL, 1997, p. 41-2--italicos nossos).

    A posse se manifesta na apropriacao de objetos externos e internos. Apenas a segunda e plena, ou seja, pode realizar-se em sua completude. A consciencia, ao apropriar-se de si, realiza a liberdade. Podemos ver aqui duas questoes.

    Uma, diz respeito a aspiracao de liberdade. Apenas a consciencia livre pode aspirar a liberdade, e a idade moderna, em contraste com as formas historicas anteriores, possibilita a constituicao do individuo livre para se apropriar do mundo e de si. A liberdade, antes que um estado, e ato; ato de constituir a si mesma.

    [[seccion] 21] O escravo nao conhece a sua essencia, a sua infinitude, a sua liberdade, nao se conhece como essencia e, portanto, nao se conhece, nao pensa. Esta consciencia de si que se apreende como essencia pelo pensamento e assim se separa do que e contingente e falso constitui o principio do direito, da moralidade subjetiva e objetiva (HEGEL, 1997, p. 26). Outra, diz respeito a apropriacao de si. A plena liberdade passa a exigir nada menos que a posse plena (3). A apropriacao plena de objetos externos e simplesmente imperfeita, pois baseada num leque "infinitamente multiplo" de possibilidades ditadas por situacoes infinitas de contingencia. Somente a apropriacao do objeto interno e perfeita, pois se inscreve na orbita de apropriacao do espirito sobre si mesmo--uma forma de apropriacao capaz de gerar o autorreconhecimento do completo exercicio da liberdade.

    A consciencia, portanto, se torna livre 1) ao compreender-se plenamente livre ou ao adquirir plena consciencia de sua liberdade; 2) ao reconhecer sua capacidade livre de possuir, de apropriar; 3) ao ter essa capacidade reconhecida pelos demais--nao basta a simples apropriacao ou o sentimento subjetivo de liberdade, e preciso que essa liberdade seja reconhecida, que se torne uma objetividade universalmente valida ou, como comentaria a este respeito Marcuse (1984, p. 181): "o individuo so e livre quando se conhece como livre, e so atinge este conhecimento quando poe a prova sua liberdade".

    O individuo e livre para possuir, para se apropriar, mas "o ato de apropriacao se completa quando outros individuos com ele concordam (4), ou quando outros individuos o 'reconhecem'" (MARCUSE, 1984, p. 181). A propriedade ganha, a partir de Hegel, um sentido essencial na constituicao da liberdade humana--na constituicao para si do homem--e na propria organizacao do mundo, no ordenamento das coisas, na dacao de significado para o conjunto da realidade como atribuicao de essencia ao mundo circundante:

    [seccion] 57 - Na existencia imediata que nele se manifesta, o homem e um ser natural, exterior ao seu conceito; so pela plenitude do seu corpo e do seu espirito, pela conscientizacao de si como livre, e que o homem entra na posse de si e se torna a propriedade de si mesmo por oposicao a outrem. A possessao e aqui, por outro lado e inversamente, o ato de o homem realizar aquilo que e como conceito (como possibilidade, faculdade, disposicao), ato pelo qual e ao mesmo tempo dado como seu e como objeto separado da simples consciencia de si e, portanto, suscetivel de receber a forma da coisa (HEGEL, 1997, p. 55--italicos nossos). A partir da caracterizacao positiva da propriedade como a mediacao necessaria ao nascimento e estabelecimento da liberdade, coloca-se um problema: a apropriacao real, que se manifesta como desigualdade de apropriacao. Por um lado, fica a propriedade, resultado do ato de apropriacao, fundada na acao livre do homem (a propria acao o constitui como ser livre, afirmando o espirito); por outro, fica a distribuicao (desigual) da propriedade, sua manifestacao real, ligada a contingencia e, portanto, fora do alcance do direito e da razao: e a razao precisa abandonar elementos contingenciais para se concentrar no movimento abstrato mais geral (5). O paragrafo 49 dos Principios da Filosofia do Direito nos da uma clara demonstracao deste necessario carater geral (essencial) que deve tomar o direito. A citacao, embora longa, e aqui necessaria:

    [seccion] 49 - O que ha de racional na relacao com as coisas exteriores e que eu possuo uma propriedade; o aspecto particular abrange os fins subjetivos, as carencias, a fantasia, o talento, as circunstancias exteriores ([seccion] 45). So disso depende a posse. Mas neste aspecto particular ainda nao e, neste dominio da personalidade abstrata, identica a liberdade. E, pois, contingente, do ponto de vista juridico, a natureza e a quantidade do que possuo. Nota - Enquanto pessoas, sao equivalentes as multiplas unidades (se e que se pode falar de multiplicidade onde ainda nao ha uma diferenca de tal natureza). Isso nao passa, porem, de um principio tautologico e vazio, pois a pessoa, enquanto abstrata, e precisamente o que ainda nao se particularizou e situou nas determinacoes que a diferenciam. A igualdade e a identidade abstrata do intelecto; sobre ela se funda a mediocridade do espirito, sempre que depara com a relacao da unidade a uma diferenca. Aqui, a igualdade so poderia consistir na igualdade das pessoas abstratas como tais; ora, tudo o que se refere a posse, dominio de desigualdade, fica a margem da pessoa abstrata. A reivindicacao algumas vezes apresentada da igualdade na divisao das propriedades de raiz e ate de todo o genero de fortunas e uma concepcao vaga e superficial...

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