O dilema da periferia e a dupla dialetica do esclarecimento/Periphery at the crossroads and the double dialectics of enlightenment.

AutorBachur, Joao Paulo

Introducao: a dulpla dialetica do esclarecimento (1)

Este artigo pretende oferecer uma contribuicao a autocompreensao teorica da America Latina a partir de uma perspectiva dialetica filiada a tradicao frankfurtiana. A hipotese a ser demonstrada e a de que, ao inves de constituir uma especie de "civilizacao incompleta" ou "semi-desenvolvida"--"em desenvolvimento" rumo ao centro capitalista desenvolvido--a periferia e o avesso do Esclarecimento (2) e a ele impenetravel. A periferia nao caminha para o centro, mas e seu negativo. Essa e sua caracteristica essencial.

Contra, de um lado, modelos explicativos que simplesmente veem a America Latina como projecao inacabada do capitalismo central; e, de outro lado, contra modelos que representam o mundo ocidental em uma dualidade insuperavel, dispondo de um lado o desenvolvimento e o subdesenvolvimento como realidades proprias e alocando a America Latina neste ultimo polo (mesmo admitindo que o subdesenvolvimento possa ser caracterizado por reproduzir em si mesmo essa dualidade original no convivio do arcaico e do moderno), pretende-se argumentar que nossa realidade e um momento da totalidade social; tem um lugar proprio no desenvolvimento do capitalismo: a periferia funciona como o negativo do capitalismo democratico ocidental e justamente nisso esta o ponto fundamental para resolver seu historico dilema de autocompreensao.

O especifico da America Latina e viver uma dupla dialetica (Arantes 1992): se a Dialetica do Esclarerecimento (Adorno & Horkheimer 1947/1985) implica reconhecer que o Esclarecimento e simultaneamente mito (isto e, luz e sombra, emancipacao e dominacao, racionalizacao do mundo e mitificacao da razao, desencantamento e reencantanmento do mundo), a colonia independente faz com que o Esclarecimento seja nao apenas o mito da emancipacao mas, sobretudo, a modernizacao do arcaico. A implosao das bases sociais do feudalismo europeu nao produziu o mesmo efeito na America Latina, vez que os movimentos de independencia preservaram integralmente a dominacao oligarquica rural. O argumento acompanha, portanto, ate certo ponto, o diagnostico classico de Sergio Buarque de Holanda em Raizes do Brasil. Diferentemente das abordagens poscoloniais ou decoloniais atualmente em voga, especialmente as tributarias do desconstrucionismo (notadamente Spivak 1993, adotaremos um ponto de vista que procura explicar o dilema de autocompreensao latino-americano por uma dialetica especifica do capitalismo periferico: ha, aqui, uma inversao interna do modo de producao, na medida em que as relacoes de producao estabelecidas na ordem colonial restringiram o desenvolvimento de forcas produtivas plenamente capitalistas; ao mesmo tempo, contudo, em que a ideologia assim produzida sugeria - e ainda sugere a aderencia ao projeto civilizatorio liberal-democratico do centro (Schwarz 2000).

Para demonstrar esse ponto, partiremos de um breve esboco do dilema da autocompreensao latino-americana (secao I), para dai apresentarmos os limites de explicacoes economicistas (secao II) em funcao da resistencia politica que a colonia ofereceu (e ainda oferece) ao capitalismo (secao III). Veremos que essa resistencia e a marca distintiva da periferia e impoe consequencias profundas para a representacao simbolica que a periferia faz de si mesma (secao IV). Ao fim e ao cabo, a periferia nao e um estagio rumo ao centro, mas sua imagem invertida.

  1. Civilizacao ou barbarie? O dilema da autocompreensao colonial

    O que se poderia chamar de dilema da autocompreensao latino-americana pode ser assim formulado: ate hoje, a America Latina nao chegou a se constituir em um projeto politico positivo nos termos propugnados pelo Esclarecimento europeu de onde irradia o capitalismo e essa impossibilidade e na verdade historicamente constitutiva da organizacao social latino-americana.

    Esse dilema pode ser ilustrado pelo famoso Facundo, de Domingo Faustino Sarmiento, publicado em 1845. O titulo do livro de Sarmiento remete a Facundo Quiroga (1788-1835), conhecido por seu envolvimento no movimento da independencia argentina, caracterizado como provinciano, barbaro, valente, audaz, assassinado tragicamente e substituido por Rosas, falsamente culto, tirano do povo argentino (Sarmiento 1993, ps. 35-37). Nesses termos, Sarmiento formulou o dilema teorico frente ao qual a auto-compreensao historica da America Latina tinha necessariamente de se posicionar dai em diante--a formula "civilizacao ou barbarie?" exigia do Novo Continente independente uma escolha que variasse entre o modelo de desenvolvimento encarnado na metropole civilizada e a brutalidade do passado colonial: "?No habeis oido la palabra selvaje que anda revolteando sobre nuestras cabezas? De eso se trata: de ser o no ser selvaje" (Sarmiento 1993, p. 42--grifos no original).

    Na formulacao de Sarmiento, a civilizacao designava o urbano, o europeu, a cultura ilustrada; a barbarie era o resto: a colonia, o rural, o provinciano. Diante do dilema posto para a auto-compreensao latino-americana, para "nao ser selvagem" era preciso, portanto, civilizar-se (Quijada S/D, p. 310). Nao parece exagero vislumbrar nesse esforco de auto-civilizacao o ponto critico do dilema latino-americano: tomando como modelo a Europa, civilizar-se significa amoldar-se ao modelo--"europeizar-se", portanto. Vale considerar que a tarefa foi proposta como projeto politico, por exemplo, por Alberdi (Alberdi, 1943) (3). Com isso, a propensao para a adocao de modelos intelectuais e institucionais oriundos da Europa civilizada fica mais ou menos explicada, pois era necessario superar a barbarie colonial pela importacao e implantacao exogena de elementos europeus civilizados: o constitutivo da America Latina e a circunstancia de que sua auto-compreensao e ocidentalmente referenciada:

    "Si un destello de literatura nacional puede brillar momentaneamente en las nuevas sociedades americanas, es el que resultara de la descripcion de las grandiosas escenas naturales, y, sobre todo, de la lucha entre la civilizacion europea y la barbarie indigena, entre la inteligencia y la materia" (Sarmiento 1993, p. 77). Essa fragmentacao constitutiva dificultou sobremaneira as iniciativas de interpretacao nacional no momento pos-independencia, ate porque a independencia nao engendrou nacionalidades radicalmente novas. Ademais, durante um periodo bastante significativo, a questao "barbarie ou civilizacao" foi compreendida em termos raciais. Sao fartas, nesse sentido, as referencias a "patologia" da sociedade pos-colonial mestica, como por exemplo, o Manual de Patologia Politica, de Agustin Alvarez, de 1899; El Continente Enfermo, de Cesar Zumeta, tambem de 1899; Nuestra America, de Carlos Octavio Bunge, de 1903; Enfermedades sociales, de Manuel Ugarte, de 1905; e o conhecido Pueblo Enfermo, de Alcides Arguedas, de 1909; profundamente influenciados pela sociologia positivista europeia do final do seculo XIX e, especialmente, pela psicologia social expressa nas Lois Psychologiques de l'Evolution des Peuples, de 1894, de Gustave Le Bon. Nesse sentido, a "alma nacional" passa a ser o conceito central para a compreensao da America Latina, atestando-se com isso a enfermidade social do Novo Continente por conta da mescla racial de sua populacao, sendo impossivel alcancar uma consciencia nacional em meio a composicao mestica da populacao latino-americana. Essas interpretacoes raciais sao a expressao mais imediata da America Latina confrontada por seu dilema de auto-compreensao: diante da barbarie encarnada na colonia e da civilizacao encarnada na Europa, a America Latina, ora colonia independente, precisava encontrar seu posto e a explicacao racial fazia a mediacao (4).

    Com efeito, a formula "civilizacao ou barbarie" polariza as alternativas de tal maneira que obscurece a real situacao latino-americana: os ensaios interpretativos tendem a buscar algum ponto medio entre os extremos. Contudo, o dilema de autocompreensao da America Latina esta alem desse esquematismo binario. O hiato oculto na pergunta de Sarmiento nao tem como ser preenchido: a independencia hispanoamericana, em certa medida eco do Esclarecimento racionalista europeu, nao enraizou o Iluminismo no Novo Mundo ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, consolidou a independencia no continente tal como ele se encontrava - i.e., politicamente conduzida pela oligarquia rural.

    Alain Rouquie oferece uma formulacao bastante sugestiva ao caracterizar a America Latina como "extremo Ocidente": pretende demonstrar que, nao obstante a organizacao economica da America Latina esteja profundamente condicionada pelas relacoes entre o centro e a periferia do capitalismo, o Novo Continente liga-se culturalmente ao Ocidente, principalmente em funcao do catolicismo (Rouquie, 1991). Com isso, e possivel extrapolar um pouco o escopo de Rouquie e extrair consideracoes mais gerais do ponto de vista teorico: a realidade historico-social da America Latina pode ser sintetizada em uma singularidade essencialmente fragmentada, ja que seu sentido cultural e diretamente ocidental enquanto seu sentido economico e apenas indiretamente ocidental - mas em ambos os casos, tal relacionamento fora determinado pelo velho Ocidente, o que e demonstrado pelo passado colonial-catolico iberoamericano. Se, do ponto de vista economico, a America Latina e apenas indiretamente ocidental, ha que se considerar que, ainda desse ponto de vista, ela nao chegou a constituir-se como um alter ao Ocidente capitalista. Por "extremo Ocidente", assim, pode-se designar uma negacao do Ocidente que, nao obstante tal circunstancia, nao se cristalizou em uma positividade alternativa.

    Essa perspectiva de analise esta em sintonia com a peculiavisao de Richard Morse quanto a realidade historica da sociedade latino-americana: a America Latina nao se caracteriza por um "ser pela metade", mas sim e muito profundamente por "ser um nao ser" (Morse, 1988). Nao se trata de uma ordem social inspirada pelo centro do capitalismo e que...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT