Dilemas e Desafios da Proteção Internacional dos Direitos Humanos no Limiar do Século XXI

AutorAntônio Augusto Cançado Trindade
CargoProfessor Titular da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco Juiz e Vice-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos
  1. No próximo ano estará a Declaração Universal de Direitos Humanos completando seu cinqüentenário, no limiar do novo século. Ao longo das cinco últimas décadas testemunhamos o processo histórico de gradual formação, consolidação, expansão e aperfeiçoamento da proteção internacional dos direitos humanos, conformando um direito de proteção dotado de especificidade própria. Este processo partiu das premissas de que os direitos humanos são inerentes ao ser humano, e como tais antecedendo a todas as formas de organização política, e de que sua proteção não se esgota na ação do Estado. Ao longo deste meio século, como respostas às necessidades de proteção, têm-se multiplicado os tratados e instrumentos de direitos humanos, a partir da Declaração Universal de 1948, tida como ponto de partida do processo de generalização da proteção internacional dos direitos humanos. A realização deste I Congresso Brasileiro de Educação em Direitos Humanos e Cidadania1constitui uma ocasião adequada para procedermos a um balanço, baseado na experiência acumulada nesta área, dos dilemas e desafios da proteção internacional dos direitos humanos no limiar do novo século.

  2. A primeira Conferência Mundial de Direitos Humanos (Teerã, 1968) representou, de certo modo, a gradual passagem da fase legislativa, de elaboração dos primeiros instrumentos internacionais de direitos humanos (a exemplo dos dois Pactos das Nações Unidas de 1966), à fase de implementação de tais instrumentos. A segunda Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993) procedeu a uma reavaliação global da aplicação de tais instrumentos e das perspectivas para o novo século, abrindo campo ao exame do processo de consolidação e aperfeiçoamento dos mecanismos de proteção internacional dos direitos humanos. Decorridos quatro anos desta última Conferência, encontram-se os órgãos internacionais de proteção dos direitos humanos diante de dilemas e desafios, próprios de nossos dias, que relacionaremos a seguir.

  3. Cabe, de início, ter sempre presente que, nas últimas décadas, graças à atuação daqueles órgãos, inúmeras vítimas têm sido socorridas. Até o início dos anos noventa, no plano global (Nações Unidas), por exemplo, mais de 350 mil denúncias revelando um "quadro persistente de violações" de direitos humanos foram enviadas às Nações Unidas (sob o chamado sistema extraconvencional da resolução 1503 do ECOSOC). Sob o Pacto de Direitos Civis e Políticos e seu primeiro Protocolo Facultativo, o Comitê de Direitos Humanos, tinha recebido, até abril de 1995, mais de 630 comunicações, e em 73% dos casos examinados concluiu que haviam ocorrido violações de direitos humanos. O Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial tinha examinado (sob a Convenção do mesmo nome), a seu turno, em suas duas primeiras décadas de operação, 810 relatórios (periódicos e complementares) dos Estados Partes. E o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), decorridas quatro décadas de operação do sistema, cuida hoje de mais de 17 milhões de refugiados em todo o mundo2 , sem falar no total ainda maior de deslocados internos.

  4. No plano regional, por exemplo, até o início desta década, no continente europeu, a Comissão Européia de Direitos Humanos tinha decidido cerca de 15 mil reclamações individuais sob a Convenção Européia de Direitos Humanos, ao passo que a Corte Européia de Direitos Humanos totalizava 191 casos submetidos a seu exame, com 91 casos pendentes. No continente americano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos ultrapassava o total de 10 mil comunicações examinadas, enquanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos, hoje com 14 pareceres emitidos, passava a exercer regularmente sua competência contenciosa, contando hoje com onze casos contenciosos pendentes. E, no continente africano, a Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos examinava quase 40 reclamações ou comunicações sob a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos3 , algumas das quais já decididas.

  5. Graças aos esforços dos órgãos internacionais de supervisão nos planos global e regional, logrou-se salvar muitas vidas, reparar muitos dos danos denunciados e comprovados, pôr fim a práticas administrativas violatórias dos direitos garantidos, alterar medidas legislativas impugnadas, adotar programas educativos e outras medidas positivas por parte dos governos. Não obstante todos estes resultados, estes órgãos de supervisão internacionais defrontam-se hoje com grandes problemas, gerados em parte pelas modificações do cenário internacional, pela própria expansão e sofisticação de seu âmbito de atuação, pelos continuados atentados aos direitos humanos em numerosos países, pelas novas e múltiplas formas de violação dos direitos humanos que deles requerem capacidade de readaptação e maior agilidade, e pela manifesta falta de recursos humanos e materiais para desempenhar com eficácia seu labor.

  6. Os tratados de direitos humanos das Nações Unidas têm, com efeito, constituído a espinha dorsal do sistema universal de proteção dos direitos humanos, devendo ser abordados não de forma isolada ou compartimentalizada, mas relacionados uns aos outros. Decorridos quatro anos desde a realização da II Conferência Mundial de Direitos Humanos, estamos longe de lograr a chamada "ratificação universal" das seis "Convenções centrais" (core Conventions) das Nações Unidas (os dois Pactos de Direitos Humanos, as Convenções sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação - Racial e contra a Mulher, - a Convenção contra a Tortura, e a Convenção sobre os Direitos da Criança), - "ratificação universal" esta propugnada pela Conferência de Viena para o final de século que já vivemos. Ademais, encontram-se estas Convenções crivadas de reservas, muitas das quais, em nosso entender, manifestamente incompatíveis com seu objeto e propósito. Urge, com efeito, proceder a uma ampla revisão do atual sistema de reservas a tratados multilaterais consagrado nas duas Convenções de Viena sobre Direito dos Tratados (de 1969 e 1986), sistema este, a nosso modo de ver...

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