A dimensão biopsicossocial da habilitação/reabilitação profissional no INSS

AutorAna Maria Isquierdo
Páginas61-81

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Ana Maria Isquierdo 28

1. Introdução

Analisando o processo histórico de formação da Previdência Social no Brasil, observamos que várias Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAP's) já apresentavam como direito aos segurados e dependentes a habilitação profissional. Na Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS), de 1960, este processo se solidifica. Em um único e instigante artigo, cujo título do Capítulo XVI denomina-se "Da Assistência Reeducativa e de Readaptação Profissional", restou assegurada no artigo 53 que: "A assistência reeducativa e de readaptação profissional cuidará da reeducação e readaptação dos segurados que percebem auxílio doença, bem como dos aposentados e pensionistas inválidos, na forma estabelecida pelo regulamento desta lei."

Por certo que esse processo tem o fim pedagógico, que parece ter perdido durante as últimas cinco décadas que se sucederam depois da promulgação da LOPS de 1960.

Não é possível um processo de habilitação/reabilitação profissional dos segurados que perdem a capacidade laboral, temporária ou permanentemente, sem haver um investimento no ser humano que ali se encontra. Não é demais frisar que, no mais das vezes, está-se diante de um cidadão fragilizado, em vias de vulnerabilização, sem emprego ou em vias de perdê-lo. Esta é a realidade que os processos atuais reabilitatórios e habilitatórios (estes últimos quando existem) teimam em desconsiderar.

Este trabalho pretende demonstrar não só a importância destes processos, como a feição biopsicossocial que estes devem ter. Em verdade, desde sua origem, eles se apresentam como inter e multidisciplinares: não somente os médicos peritos da Previdência Social dele participam, sendo tão importantes quanto os médicos, os demais profissionais: assistentes sociais, psicólogos, fisioterapeutas ocupacionais e outros tantos profissionais que compõem estas equipes.

Para tanto, dividimos este artigo em três partes. Na primeira, enfocamos os limites da Perícia Médica Tradicional, analisando a perspectiva biopsicossocial na dinâmica habilitatória e reabilitatória. Na sequência, avaliamos a ineficácia deste processo nos dias atuais, terminando, no tópico terceiro, corroborando a segunda parte deste trabalho, por uma amostragem deste processo no ano de 2015, na região de Pelotas, no Rio Grande do Sul.

2. Os Limites da perícia médica tradicional: possibilidades da perícia biopsicossocial no campo da Seguridade Social e na habilitação e reabilitação profissional

Primeiro, há de ser observado que existem várias formas de uma pessoa restabelecer a saúde. Keinman29, fundamentado em Helmam, nos ensina que se olharmos para uma sociedade complexa poderemos identificar três setores sobrepostos e interligados da assistência à saúde: o setor informal, o setor popular (folk), e o setor médico.30

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O setor informal seria o domínio leigo, não profissional. "Esse setor inclui todas as opções terapêuticas a que as pessoas recorrem sem pagamento e sem consulta a provedores tradicionais ou praticantes da medicina."31 Aqui entram a automedicação, muito usada, estimulada pelas propagandas comerciais, a família, os conselhos de parentes e amigos, as atividades de cura de igrejas, as seitas, a consulta com leigos que têm experiência específica com o transtorno.

Já o setor popular (folk) é extenso em sociedades não industrializadas e certos indivíduos especializam-se em realizar curas sagradas ou seculares ou uma mistura de ambos. Esses curandeiros não pertencem ao sistema médico, mas ocupam uma posição intermediária entre o setor informal e o profissional. Existe uma grande variedade de curandeiros populares, desde especialistas, seculares e técnicos32.

Helman relata a importância do folk, uma vez que este tipo de cura geralmente tem o envolvimento da família. Existe uma visão compartilhada de mundo, proximidade, cordialidade, informalidade, e uso de linguagem do dia a dia nas consultas. Sua ação curativa se dá em meio a ambientes com os quais o paciente está familiarizado, como o lar.

Em 1978, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a recomendar que a medicina tradicional fosse promovida, desenvolvida e integrada com a medicina científica moderna, mas enfatizou a necessidade de se garantir respeito, reconhecimento e colaboração entre os representantes dos vários sistemas envolvidos. Os recursos humanos que a OMS buscou engajar incluíam seguidores do herborismo, da medicina tradicional indiana ayurvédica, da medicina tradicional unãni ou da ioga, bem como curandeiros tradicionais, seguindo a medicina tradicional chinesa, como os acupunturistas e vários outros33.

Prestou-se atenção especial à seleção e ao treinamento de parteiras tradicionais, eis que são responsáveis por dois terços dos partos no mundo.

Já o setor profissional compreende as profissões do tratamento de saúde que são organizadas e sancionadas legalmente, como é o caso da medicina científica ocidental, também conhecida como alopatia ou biomedicina.

O setor profissional inclui tanto os médicos quanto os paramédicos, reconhecidos, tais como os enfermeiros, parteiros e fisioterapeutas. Na maioria dos países a medicina é a base do setor profissional, mas conforme relata Helman, representa uma proporção pequena do atendimento em saúde a maioria dos países do mundo, são escassos, sendo que a grande parte dos atendimentos ocorre nos setores informais e popular34.

As estatísticas da Organização Mundial da Saúde nos informa que há poucos médicos e leitos de hospitais disponíveis no mundo35. Outrossim, deve-se ter em mente que parte desses médicos que constam no relatório provavelmente trabalham na área de administração e de pesquisa ou no setor privado. Outro fato importante a ser analisado é que a distribuição de médicos não é uniforme, pois eles tendem a se concentrar em cidades onde há melhor infraes-trutura para a prática da medicina além de ser mais lucrativo. Esse conjunto de fatores faz com que a população recorra ao setor informal ou popular de atendimento à saúde.

A formação dos médicos é reflexo da cultura da sociedade aos quais ele estudou. Sociedades com tipos culturais diferentes produzem médicos com comportamentos distintos. Esses profissionais da saúde vão ter uma relação com a saúde e a doença, conforme a ideologia dominante, quer seja capitalista, de bem-estar social socialista ou comunista.

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Com efeito, uma dada sociedade pode conceber a assistência de saúde gratuita como direito básico do cidadão; em outras, o médico pode ser visto como uma mercadoria a ser comprada por aqueles que têm condições e dependendo do tipo de concepção, vai excluir parte dessas pessoas de usufruir do tratamento por serem pobres e não poderem arcar com estas despesas.

Como exemplo disso, os críticos dos sistemas médicos no mundo ocidental têm ressaltado como a organização interna do setor profissional reflete algumas desigualdades essenciais existentes nessas sociedades, especialmente com relação a gênero, classes sociais e origens culturais. Dentro do sistema médico, a maioria deles são homens (geralmente brancos) e, como acontece em âmbito social maior, são esses homens brancos que ocupam as posições de maior prestígio, de poder e de remuneração em comparação com as médicas e enfermeiras.36

Durante o processo de formação médica, os alunos passam por um processo no qual, gradualmente, vão sendo preparados para verem os problemas de saúde dentro de uma determinada realidade que muitas vezes se torna distante da realidade social geral da população. É justamente essa formação do médico (humanista ou não) que vai repercutir na maneira pela qual ele vai exercer a profissão.

A medicina está baseada na racionalidade científica. Os fenómenos relacionados à saúde e à doença só se tornam reais quando podem ser observados, quantificados e investigados. Todos os fatos clínicos têm uma causa, se a tarefa do médico é a descoberta da cadeia lógica das influências e causas que resultam o fato.

O modelo da medicina moderna pauta-se na descoberta e na quantificação das manifestações psicoquímicas dos pacientes e não nos fatores sociais e emocionais.

Segundo Kleinman: "o enfoque que o médico ocidental moderno dá à realidade clínica presume que os aspectos biológicos são mais básicos, reais, clinicamente significativos e interessantes do que os aspectos psicológicos e socioculturais."37

Geralmente, os médicos estão preparados para fazer uma análise da moléstia de forma universal, em desenvolvimento e em conteúdo. Esta perspectiva não inclui as dimensões sociais, culturais e psicológicas do problema de saúde, nem o contexto em que foram desenvolvidas. Fatores de ambiente, de personalidade, de crença religiosa, status socioeconómico são desconsiderados, eis que é dada mais relevância a realização do diagnóstico e à tratamento, pois a medicina dá mais valor às dimensões físicas da enfermidade.38

Vasconcelos e Ruiz entendem que "A educação médica tem sofrido profundas críticas quanto à necessidade de diversificar os cenários de ensino-aprendizagem para que se construam novos currículos e sujeitos, possibilitando-lhes a inserção num processo pedagógico reflexivo e dinâmico."39

Dessa maneira, a atenção à saúde, hoje, requer uma mudança na concepção de mundo e na forma de utilizar o conhecimento em relação às práticas de saúde. É muito mais do que uma aplicação técnica e normativa, ou seja, a promoção da saúde está relacionada à potencialização da capacidade individual e coletiva das pessoas para conduzirem suas vidas perante aos múltiplos condicionantes da saúde. Isto significa que é...

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