Dinâmica da prova

AutorFabiana Del Padre Tomé
Páginas221-302
221
CAPÍTULO 6
DINÂMICA DA PROVA
6.1 O ato de provar
A prova, como relato linguístico que é, decorre de atos
de fala, caracterizadores de seu processo de enunciação,
realizado segundo as normas que disciplinam a produção
probatória. Produzido o enunciado protocolar correspon-
dente à prova, este só ingressa no ordenamento por meio
de uma norma jurídica geral e concreta, que em seu antece-
dente traz as marcas da enunciação [enunciação-enuncia-
da], prescrevendo, no consequente, a introdução no mundo
jurídico dos enunciados que veicula. Esse instrumento utili-
zado para transportar os fatos ao processo, construindo fa-
tos jurídicos em sentido amplo, é o que denominamos meio
de prova.
Isso não significa, contudo, que para provar algo basta
simplesmente juntar um documento aos autos. É preciso es-
tabelecer relação de implicação entre esse documento e o fato
que se pretende provar. A prova decorre exatamente do vín-
culo entre o documento e o fato probando. Conquanto con-
sistam em enunciados linguísticos, os fatos só apresentarão
o caráter de provas se houver um ser humano utilizando-os
222
FABIANA DEL PADRE TOMÉ
para deduzir a veracidade de outro fato. É que, como ponde-
ra Dardo Scavino400, “um fato não prova nada, simplesmente
porque os fatos não falam, se obstinam em um silêncio absolu-
to do qual uma interpretação sempre deve resgatá-los. Somos
nós quem provamos, que nos valemos da interpretação de um
fato para demonstrar uma teoria”.
Para concretizar tal desiderato, produzindo enunciados
probatórios, exige-se observância a uma série de regras estru-
turais, que se prestam à organização dos diversos elementos
linguísticos, cujo relacionamento se mostra imprescindível à
formação da prova. Trata-se da sintaxe interna da prova.
Entende-se por sintaxe a parte da gramática que exami-
na as possíveis opções relativas à combinação das palavras
na frase, em suas relações de concordância, de subordinação
e de ordem401. Consiste no componente do sistema linguístico
que determina os liames de interligação entre os elementos
constituintes da sentença, atribuindo-lhes uma estrutura.
Efetuados tais esclarecimentos, não é difícil concluir que a
prova, na qualidade de enunciado de linguagem, apresen-
ta uma sintaxe interna e outra externa: (i) a forma como os
signos se combinam para constituir o enunciado probatório
corresponde à sintaxe interna; (ii) o modo pelo qual a pro-
va se articula com outros enunciados diz respeito à sintaxe
externa. Sobre o assunto, esclarece Paulo de Barros Carva-
lho402 que, “assim como há uma sintaxe interna das normas
jurídicas [intranormativa], há também uma sintaxe externa
[internormativa]. A mesma coisa ocorre com as provas: há
uma estrutura interior [sintaxe interna] e outra exterior [sin-
taxe externa, que governa a articulação das provas, organi-
zando-as para que o julgador possa decidir”. Neste capítulo,
400. La filosofía actual: pensar sin certezas, p. 39 [tradução nossa].
401. Antônio Houaiss, Mauro de Salles Villar e Francisco Manoel de Mello Franco,
Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p. 2581.
402. Teoria da prova e o fato jurídico tributário. Apostila do Programa de Pós-Gra-
duação em Direito [Mestrado e Doutorado] da USP e da PUC/SP.
223
A PROVA NO DIREITO TRIBUTÁRIO
dedicaremos nossa atenção à primeira modalidade sintática,
procurando elucidar seu procedimento organizacional, bem
como os componentes que o integram.
6.1.1 Atos de consciência
Na atividade de enunciação, tomada como ato de cons-
ciência, identificamos três aspectos distintos: (i) a ação de
realizar o ato de fala; (ii) o texto produzido pelo ato de fala,
entendido em sua forma – suporte físico; e (iii) o conteúdo
daquele ato de fala – significação. Em Husserl403 encontra-
mos firme distinção entre os atos ou modalidades-de-cons-
ciência do sujeito e os conteúdos por eles veiculados, ine-
xistindo relação unívoca entre ambos. “Os atos de vontade
são a conditio sine qua non da existência das normas; não,
porém, conditio per quam. Quer dizer, sem o fato do querer
empírico de um sujeito individual ou de um sujeito coletivo,
exercido em determinada forma [juridicamente preestabe-
lecida], não se constitui a norma. Mas a validade, qualidade
específica sua, decorrente da relação que tem ela no sistema
de normas, não depende do fato de querer subjetivo”404. Eis
a noesis em contraposição ao noema: ato e conteúdo do ato,
respectivamente.
A todo ato de vontade corresponde um conteúdo, o qual,
para ser objetivado, requer, também, forma em que se mate-
rialize. Podemos falar, portanto, em (i) ato de consciência; (ii)
forma de consciência; e (iii) conteúdo de consciência, como
parcelas da intencionalidade indissociáveis entre si. Uma
coisa é perceber, como ato específico e histórico, de ordem
psíquica; outra coisa é o seu resultado, isto é, a percepção,
que aparece como forma de consciência; e outra, ainda, é o
403. Apud Lourival Vilanova, Teoria da norma fundamental, in Escritos jurídicos e
filosóficos, v. 1, p. 309.
404.
Lourival Vilanova, Teoria da norma fundamental, in Escritos jurídicos e filosófi-
cos, v. 1, p. 325. Registre-se, contudo, que entendemos a validade como relação de per-
tinencialidade da norma com o sistema jurídico, e não como uma qualidade daquela.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT