Direito de Águas Internacional: Principais Questões

AutorDante A. Caponera
Ocupação do AutorJefe de de la legislación de la FAO
Páginas263-300
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11.1 DEMARCAÇÃO DE FRONTEIRAS
11.1.1 INTRODUÇÃO
A questão da demarcação das fronteiras nos rios que separam ou atravessam territórios de
dois ou mais Estados soberanos é uma das primeiras a surgir no direito de águas internacional
e tem sido motivo de numerosos litígios entre Estados, levando até, algumas vezes, a conlitos
armados.1
Esses litígios podem surgir na falta de acordos internacionais formais e por diversas
razões, entre as quais, a modiicação de uma fronteira original, a validade dúbia de tratados
estabelecendo a fronteira, o caráter colonial de alguns acordos e a caducidade de alguns dos
dispositivos contidos nos tratados.
As questões relativas à demarcação das fronteiras têm sido objeto de decisões de tribu-
nais de direito, bem como de tribunais arbitrais internacionais2mas, nem sempre, os doutos
juristas que trataram dessas questões concordaram com as soluções propostas.
A prática dos Estados e diversas soluções ligadas à demarcação de fronteiras serão breve-
mente analisadas a seguir.
11.1.2 A FRONTEIRA EM RIO SUCESSIVO
A determinação de fronteiras em um rio ou curso d’água sucessivo, ou seja, naquele que cruza
o território de dois ou mais Estados, não traz grandes problemas. A fronteira segue uma linha
reta imaginária que corta o rio ou curso d’água e junta, nas duas margens, os limites extremos
da fronteira terrestre entre os dois Estados. O rio, neste caso, é cortado em tantas partes
quantos forem os Estados que ele atravessa.
1 Os conlitos resultantes da demarcação das fronteiras incluem a rixa entre o Irã e o Iraque em relação à fronteira
no estuário do rio Shatt-el-Arab e entre a URSS e a China, relativa ao rio Ussuri. Hoje existem muitas outras situações
similares.
2 Sentenças arbitrais entre a Guatemala e Honduras em 1933, que determinaram as fronteiras na margem direita dos
rios Tinto e Montagua. UN Recueil des Sentences Arbitrales, II, 1368.
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PRINCÍPIOS DE DIREITO E ADMINISTRAÇÃO DE ÁGUAS NACIONAIS E INTERNACIONAIS
Do ponto de vista jurídico, podem surgir diiculdades em relação ao direito de pas-
sagem pelo rio, para ins de navegação, ou ao direito de cruzar a fronteira para outros
ins, como a lutuação de toras. Outras questões podem surgir em relação ao nível da
vazão na fronteira hidrográica e à quantidade ou qualidade da água que atravessa a fron-
teira. Entretanto, essas questões não estão diretamente ligadas ao tema da demarcação
das fronteiras luviais, mas sim aos problemas que surgem entre Estados ribeirinhos e
não ribeirinhos, quanto ao uso do rio para navegação, ou entre Estados ribeirinhos a
montante e a jusante, quanto ao uso das águas do rio para outros ins.
11.1.3 A FRONTEIRA EM RIO CONTÍGUO
A determinação de fronteiras em um rio contíguo, ou seja, naquele que separa os territó-
rios de dois ou mais Estados soberanos, sempre teve aspectos controvertidos por diversas
razões. Estas podem ser de natureza ísico-geográica, pois o tamanho, a natureza e o com-
portamento do rio, variam de maneira considerável; podem também ser de natureza jurí-
dica, uma vez que a questão só pode ser resolvida com base em um acordo entre os Estados
interessados, por não haver uma regra de direito internacional deinida a esse respeito.
Mesmo quando existe um acordo internacional sobre a fronteira, podem surgir pro-
blemas. Nesse caso, o litígio pode estar relacionado a questões como a inlexibilidade de
um tratado, em face de uma nova realidade ísica, sua interpretação, a aplicação ou a rele-
vância especial do tratado, ou até mesmo sua validade total ou parcial, além de diversas
outras questões jurídicas.
A seguir, um resumo dos modos como as fronteiras em um rio contíguo têm sido
determinadas ao longo da história.
11.1.3.1 A fronteira em margens (river res nullius)
Uma teoria medieval estabelecia as fronteiras nas margens do rio, mas o próprio rio era
considerado res nullius, ou seja, não pertencia a ninguém. Dizia o ditado latino: Rhenus est
una ripa Galliae et altera Germaniae limes, isto é, uma margem do Reno pertence à Gália
e a outra, à Alemanha. Entretanto, essa prática só prevaleceu durante a Idade Média, uma
vez que o Reno representava a fronteira entre os territórios romano e germânico.
11.1.3.2 A fronteira nas margens (river res comunis)
Houve casos em que a fronteira havia sido ixada nas margens de um rio, enquanto o
próprio rio era considerado res comunis, ou seja, propriedade comum e indivisível de
dois Estados ribeirinhos. Foi o caso, entre outros, do tratado entre a Prússia e os Países
Baixos, de 7 de outubro de 1816, em relação ao Reno, o Mosela e outros rios. Esse regime
também se aplicava ao trecho do rio Mosela que separava Luxemburgo da Alemanha.
11.1.3.3 A fronteira em uma das margens
Neste caso, a fronteira de um Estado se estende até a margem do Estado ribeirinho
oposto, e sua jurisdição inclui todo o rio.
Muitos tratados têm ixado esse tipo de fronteira hidrográica, um dos quais é o Tra-
tado de Osnabruck, de 24 de outubro de 1648, relativo ao rio Oder. A mesma situação se
aplica a vários rios e lagos internacionais, com base em tratados celebrados, em geral,
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DIREITO DE ÁGUAS INTERNACIONAL: PRINCIPAIS QUESTÕES
entre uma potência colonial forte e um Estado independente mais fraco. Um desses casos
é a fronteira ixada no rio Shatt-el-Arab, que outorgou soberania ao Iraque sobre todo o
rio, até a margem do Irã, permitindo, assim, que o Iraque controlasse e cobrasse impostos
sobre o tráico que entrava no Shatt-el-Arab. Uma série de negociações, seguidas de um
tratado celebrado em 1975, mudou essa situação, e a fronteira foi ixada no thalweg
(canal mais profundo do rio). A adoção do critério do thalweg, porém, continuou apenas
no papel, uma vez que surgiram litígios e esses Estados entraram em guerra em 1980.
Aparentemente, as questões da fronteira não foram resolvidas, mesmo após a guerra.
Sobre este tema, também houve uma sentença arbitral, em 1933, no litígio entre a
Guatemala e Honduras, que ixou a fronteira sobre alguns trechos dos rios Tinto e Mon-
tágua, na margem direita.
11.1.3.4 A fronteira na linha mediana
Nessa prática, as fronteiras dos Estados são ixadas no meio do rio, ou seja, na “linha
mediana,” uma linha imaginária equidistante de ambas as margens, que também corres-
ponde ao centro geométrico do rio.
Um dos primeiros tratados a ixar a fronteira na linha mediana foi o Tratado de Paris,
de 10 de novembro de 1763, relativo ao rio Mississipi, assinado entre Inglaterra, França e
Espanha. Existem numerosos acordos celebrados entre Estados, estabelecendo esse tipo
de fronteira. Entretanto, no caso dos rios navegáveis, a fronteira na linha mediana não
tem sido uma solução satisfatória, uma vez que nem sempre é possível segui-la quando
se navega. Além disso, essa linha tende a mudar de lugar quando o nível da água sobe, ou
no caso de enchentes, ou quando as margens opostas de um rio têm alturas diferentes.
Devido a ocorrências naturais, portanto, em muitos casos a linha mediana não pode ser
devidamente determinada, podendo ser necessárias revisões periódicas.
11.1.3.5 A fronteira no thalweg
Thalweg é uma palavra alemã que signiica canal mais profundo. A ixação de uma fron-
teira no thalweg tem sido introduzida em muitos tratados internacionais, especialmente
no caso de rios navegáveis, a im de facilitar seu uso para ins de navegação.
Um dos primeiros acordos, ixando a fronteira no thalweg, foi o Tratado de Luneville, de
9 de novembro de 1801, sobre o rio Reno. Entretanto, parece haver registros mais antigos
de uma controvérsia entre o Abade de St. Gallen e o Bali de Feldkirchen, em 1560, quando
foi decidido que a fronteira entre a Áustria e a Suíça seria onde “uma pena, em tempo bom,
seguir o luxo do Reno...”. O Tratado de Westphalia, de 1648 também ixou a fronteira entre
a França e o Império Germânico no thalweg. O critério do thalweg também tem sido quase
sempre seguido para deinir as fronteiras hidrográicas na África, na Ásia e nas Américas.
O signiicado exato da expressão thalweg varia, dependendo da convenção. Algumas
vezes, indica a parte mais profunda do rio, outras, o principal canal navegável, e outras
ainda, a linha mediana do principal canal navegável. Segundo o Tratado de 16 de
novembro de 1825, entre a França e a Suíça, relativo ao rio Ródano, na hipótese de se
baixar pouco a pouco o nível do rio, até o ponto mais baixo possível, para suas águas não
deixarem de luir sem interrupção, em toda sua extensão, encontrar-se-ia o thalweg.
Se o critério do thalweg, no caso de rios contíguos navegáveis, e o critério da linha
mediana, no caso de rios contíguos não navegáveis, devem ser considerados princípios
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