O direito alemão e a luta pelo direito

AutorRudolf von Ihering
Ocupação do AutorImportante jurista alemão
Páginas119-149

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Poderíamos dar por concluída aqui a nossa tarefa, mas nos permita, entretanto, tratar de uma questão que está intimamente relacionada com a matéria de que temos falado; e esta é a de saber em que proporção o nosso direito atual, ou melhor, o nosso atual direito romano, tal qual está introduzido na Alemanha e do qual ousamos unicamente ocuparnos, corresponde às condições que temos até aqui desenvolvido.

Não vacilamos em afirmar categoricamente que não corresponde de modo algum e que está muito longe das pretensões legítimas de um homem em que o sentimento legal está perfeitamente são.

Não somente porque, em muitos casos que a prática oferece, não tenha encontrado solução, mas porque reina em seu conjunto um modo de ver com-

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pletamente contrário a esse idealismo, que acima representamos, como constituindo a natureza e o bom estado do sentimento legal.

O nosso direito civil não é o que menos reproduz essa consideração ideal que nos mostra em uma lesão não só um ataque contra a propriedade, mas também contra a própria pessoa.

Não tem para todas as violações do direito, salvo o ataque à honra, outra medida que a do valor material, pelo que não é mais que a expressão de um grosseiro e puro materialismo.

Mas dir-se-á: o que deve garantir o direito, do que for violado em sua propriedade, senão o objeto em litígio ou o seu valor1Admitindo-se a justiça desta objeção, imperioso se tornava chegar à conclusão de que não poderia ou não devia ser castigado o ladrão que tivesse restituído o objeto roubado.

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Mas, replicar-se-á ainda, o ladrão não ataca somente a pessoa lesada, mas também as leis do Estado, a ordem legal e a lei moral.

Queremos que nos diga se não acontece o mesmo com o devedor que nega de má-fé o empréstimo que se lhe fez, o mandatário que abusa indignamente valendo-se da confiança em si depositada.

É reparar-se a lesão que se fez ao nosso sentimento legal, o não conceder-nos, depois de longo pleito, senão o que desde o princípio nos pertencia?

Mas, afora esse desejo tão motivado de se obter satisfação, não é irritante o desequilíbrio natural que existe entre as partes?

O perigo que as ameaça de perder a demanda consiste para um em perder o bem que era seu e para o outro, na entrega do objeto que injustamente conservava; no caso contrário, um teria a vantagem de nada haver perdido, e o outro de se haver enriquecido à custa do seu adversário.

Não é isso provocar a maior das falsidades e conceder um prêmio à deslealdade?

Em verdade, não fazemos senão caracterizar o nosso direito, e mais além teremos ocasião de mencionar fatos em nosso apoio; porém, cremos que fa-

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cilitará a prova considerar desde já o ponto de vista sob que se encarava esta questão no direito romano.

A esse respeito distinguimos três graus no seu desenvolvimento.

O sentimento do direito é no primeiro período de uma violência desmesurada, e se posso assim exprimir-me, direi que se não conseguiu dominar: é o antigo direito; no segundo, reina ostentando uma grande força de moderação: é o direito intermediário; no terceiro, enfraquece-se e estiola-se: é o fim do império, e particularmente, o direito Justiniano.

Em poucas palavras resumiremos o resultado das investigações que fizemos e publicamos em outra obra, sob a forma como esta questão aparece, no primeiro grau do seu desenvolvimento.

A irritabilidade do sentimento do direito nesta época era tal que toda a lesão, todo o ataque ao direito pessoal se considerava uma injustiça subjetiva, sem se tomar em consideração a inocência ou o grau de culpabilidade do agressor.

Assim, o querelante exigia, pelo próprio fato da ofensa, daquele que era formalmente culpado como daquele que somente o era materialmente, uma satisfação.

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Aquele que negava uma dívida provada, evidente (nexum) e o que houvesse causado um dano em alguma coisa do seu adversário, pagava, se perdia, o dobro.

Do mesmo modo, o que em ação de reivindicação retirasse os frutos como se fosse o proprietário, se fosse condenado, devia restituir o dobro, e por haver perdido o litígio, era ainda obrigado a sacrificar a soma caucionada como fiança ou multa (sacramentum).

Não só o querelante como o demandista vencido estava sujeito à mesma pena, e isso porque reclamava coisa que não lhe pertencia.

Se se excedia um pouco na avaliação da quantia que reclamava um juízo, ainda quando fosse de dívida certa, retirava-se e anulava-se a demanda.

Para o direito novo passou alguma coisa dessas instituições e princípios do antigo, mas tudo o que é próprio do direito intermediário tem um espírito completamente diferente que pode ser assim caracterizado: é a aplicação e o emprego de uma grande moderação, em todos os casos em que se trata de lesões ao direito privado.

Distingue-se rigorosamente a injustiça objetiva da subjetiva: a primeira supõe apenas a restituição do objeto, a segunda acarreta mais uma punição que

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consiste ou em multa ou em infâmia, sendo esta aplicação proporcional das penas precisamente um dos pensamentos mais puros do direito romano desse período.

Os romanos tinham um sentimento do direito demasiadamente justo para permitir ao depositário que tivesse a perfídia de negar ou de deter injustamente o depósito, ao mandatário ou ao tutor que houvesse abusado de sua posição de confiança para servir os seus interesses, ou que abandonasse propositalmente o cumprimento de seus deveres, que pudessem salvar a sua responsabilidade restituindo o objeto, segundo a hipótese, ou pagar os danos e prejuízos.

Exigiam ainda que o culpado fosse punido, primeiramente como satisfação pessoal, e depois como meio de intimidação.

Entre as penas mais em uso estava a infâmia, pena gravíssima, porque acarretava não só a perda dos direitos do cidadão, como também a morte política.

Aplicava-se principalmente quando a lesão revestia o caráter de uma deslealdade especial. Também havia a pena pecuniária, da qual se fazia um uso muito mais freqüente.

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Havia-se estabelecido um completo arsenal de tais meios de intimidação para aquele que intentasse um processo ou uma causa injusta.

Estas penas consistiam, a princípio, em frações do objeto em litígio, 1/10, 1/5, 1/3, 1/2, elevandose logo até muitas vezes abranger o seu valor, e se perdiam, em certos casos, ao infinito, não sendo possível formar um juízo da obstinação do adversário; isto é, quem perdia devia pagar tudo o que o adversário exigisse, sob juramento, como satisfação suficiente.

Havia em particular duas formas de processo: “os interditos proibitórios do pretor e as ações arbitrárias”, que tinham por fim colocar o acusado na necessidade de desistir ou aguardar até ser reconhecido como culpado de ter violado a lei, com deliberado propósito e, como tal, ser tratado.

Obrigavam-no, quando persistia em sua resistência, ou em seu ataque, a não limitar a sua ação contra a pessoa do acusador, mas também a agir contra a autoridade, daí resultando que não era do direito do demandista que se tratava, mas da própria lei, que, por seus representantes, se achava em questão.

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O fim a que se propunha, aplicando tais penas, não era outro senão o que se queria alcançar em matéria criminal: por um lado, o fim puramente prático de colocar os interesses da vida privada ao abrigo desses atentados não compreendidos sob o nome de crimes; por outro lado, o fim ideal de fazer solidárias a honra e a autoridade da lei, dando satisfação ao sentimento do direito que tinha sido lesado, não só na pessoa que foi diretamente atacada, como também nas de todos que dele tivessem conhecimento.

O dinheiro não era, pois, o fim que se tinha em vista, mas um meio para atingi-lo.2

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Esse modo de encarar a questão, que o direito romano intermediário tinha, é, a nosso ver, maravilhoso.

Afastando-se por igual dos dois extremos, do velho que colocava a injustiça objetiva no mesmo plano da subjetiva, e do nosso direito atual, que, avançando em direção contrária, rebaixara esta ao nível daquela, satisfazia por completo as legítimas pretensões que pudesse ter o sentimento do direito mais justo, porque não se contentava em separar as duas espécies de injustiças, mas sabia discernir e reproduzir, com minuciosidade e inteligência, a forma, a maneira, a gravidade e todos os diversos aspectos da injustiça subjetiva.

Ao chegar ao terceiro período ou grau do desenvolvimento do direito romano, tal qual foi fixado nos Institutos de Justiniano, não podemos deixar de recordar e admirar a influência e importância do direito de sucessão na vida dos povos, como na dos indivíduos.

Qual seria, realmente, o direito nesta época se ela devesse estabelecê-lo por suas próprias forças?

Do mesmo modo que certos herdeiros, que são incapazes de procurar o que lhes é estritamente necessário, vivem à custa das riquezas...

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